Filipa Martins esteve na Ucrânia em plena guerra.
Decidiu lá ir, há poucas semanas.
Dormiu num bunker, ouviu sirenes de bombardeamento, escreveu com o corpo em sobressalto e regressou com uma história para contar. É a partir dessa experiência — descrita num texto publicado na revista Visão — que começa esta conversa, mas o que se segue vai muito além da crónica de uma viagem a um país em conflito.
Que histórias ainda não ousámos contar? Filipa Martins.
Filipa Martins é escritora, jornalista e argumentista.
Publicou romances, ensaios, argumentos televisivos e, até uma biografia: O Dever de Deslumbrar, dedicada à vida e à obra de Natália Correia — um projeto de seis anos de investigação e escrita, que reconstitui o percurso de uma das figuras mais complexas e livres da cultura portuguesa do século XX.
Neste episódio do Pergunta Simples, Filipa Martins fala sobre tudo isso: o processo criativo, o método, as viagens, os limites da exposição pessoal na escrita, sobre a responsabilidade de narrar vidas reais, nas biografias..
Mas fala também — e com contundência — sobre o estado da democracia, o espaço das mulheres na cultura e na sociedade, e o modo como certos retrocessos se tornam visíveis nas estatísticas, nos discursos, e até nos algoritmos das redes sociais.
Ela assinou o argumento das séries Três Mulheres e Mulheres às Armas, onde a ficção histórica serve como espaço de reconstrução de memórias silenciadas — em particular, as histórias de mulheres que tiveram um papel ativo em momentos decisivos da história portuguesa, mas que a narrativa oficial nunca destacou.
Na conversa, há espaço para o rigor e para a emoção. A autora explica por que razão sente necessidade de “palmilhar” o território antes de escrever — uma herança do jornalismo que molda a sua literatura. Explica também por que razão vê a escrita como um gesto de observação e de resistência — mesmo quando isso significa abrir feridas ou reescrever memórias difíceis.
Falamos das notas tiradas em viagem, da organização caótica dos cadernos perdidos, da vida doméstica retratada nas redes, da romantização dos papéis tradicionais, do papel do medo e da intimidade na criação literária.
Filipa Martins está, presentemente, a terminar o seu próximo romance. Não é autobiográfico, diz — mas é, até agora, o mais pessoal. Um livro que volta à memória, à linhagem feminina e às marcas que se herdam.
Esta conversa é sobre tudo isto. Sobre escutar, observar e transformar o que se vive — em literatura, em pensamento, em matéria para não esquecer.
LER A TRANSCRIÇÃO DO EPISÓDIO00:00:00:00 – 00:00:03:06
Filipa Martins, Jornalista, escritora.
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Imagino que agora te sintas mais escritora do que jornalista. Um sim, mas um género com.
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Esta conversa que é quase uma conversa de karma, porque a primeira vez que nós tentamos, ainda na nossa santa ignorância, descobrimos que não havia luz. Na verdade, houve um apagão ibérico, na verdade mais do que ibérico, certo? Creio que esta luz não diz tudo, ainda mais sabendo que falar contigo era um enorme gosto. Mas só hoje de manhã, sabendo que vinha cá hoje na rádio, eu estava a temer que houvesse outro cataclismo que nos separasse.
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E aí passávamos então a ser banco. Como é que tu vives? Tu paga um. Olha, na verdade foi muito agradável. Eu sei que houve situações muito complexas, mas a minha versão dos acontecimentos foi foi, foi bastante simpática. Encontrei amigos por acaso na rua, que é uma coisa absolutamente estranha em Lisboa, quase como aquela que os encontros casuais da aldeia e de repente se combinamos juntar crianças.
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Então passámos um serão. Tivemos também a sorte de ser uma altura do ano em que em que a noite chegou bastante tarde, portanto, e até às 08h30 tivemos o lusco fusco, vendo os fusco, as crianças a subirem, encher as casas com lanternas e a brincarem com a fazer sombras chinesas na parede. Portanto, foi até um apagão bastante romantizado.
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Vivemos, por isso, quase um ensaio da cegueira que subitamente descobrimos que ficamos cegos. Ficamos cegos sem o telemóvel para poder falar com os nossos amigos ou com a nossa família. Ficamos sem luz. Descobrimos que cozinhar podia ser um desafio. Descobrimos que não havia velas, que as pilhas não estavam lá, que se calhar o rádio a pilhas também não estava no sítio certo.
00:01:55:02 – 00:02:21:14
Na verdade, eu tenho uma sogra fantástica que no último terramoto em Lisboa, quis oferecer a toda a família uma espécie de kit emergência, uma mulher avisada e absolutamente um grande beijinho para a Filomena Martins e ela ofereceu nos um rádio não só a pilhas como a energia solar e a manivela. Portanto, dá para tudo. Fomos buscá la e tornou se uma espécie de rei.
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Foi posto no centro da mesa de jantar e era o nosso contacto com o mundo. E depois veio a vai apetrechada de conteúdos com camping, gás, com com lanternas, com e tudo. Toda a gente percebeu. Ultrapassámos sem grandes sobressaltos este texto apagado. Toda a gente precisa de uma Filomena Martins na sua vida. Foi então que, perante um acontecimento deste ou outro qualquer.
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Tu reage como uma observadora que está a ver o mundo para depois poder escrever sobre isto ou vives duma forma mais ansiosa ou mais angustiada quando quando acontecem estas coisas? Eu acho que tem duas características que às vezes, às vezes convivem, outras vezes são conflituantes. Eu entro sempre muito em modos de de gestão, portanto de planeamento, implementação e de organização.
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Isto é, para resolver isto, isto tem de agudizar principalmente depois de eu ser mãe, ou seja, eu era esta esta minha vertente de planeamento, de conseguir ter um pescoço ligeiramente alto e ir ver e ver o que se há de vir, mesmo assim, sem pânico. E depois há outra vertente que é a vertente da observação. É muito interessante quando há uma espécie de vírus na nossa estes fenómenos, uma espécie de cisnes negros não é que surgem e que se infiltram no nosso dia a dia e desestabilizam e criam pequenos sismos.
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E é muito interessante como? Como? Como escritora, Como observadora. A ver como é que essas ondas sísmicas se propagam e criam disrupções. E é perceber que há aqui muitos fenómenos de Butterfly effect. Não é, como muitos fenómenos borboleta, que estas repressões provocam. Isso faz nos sentir, faz sentir mais vulnerável ou ter essa consciência dessa vulnerabilidade, porque, no fundo, lá está, apagaram só luz, não é?
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Sim, absolutamente. E faz me. Faz me sentir mais desperta. Ou seja, parece que há aqui um lado mais. Se calhar vamos chamar nossa, é primitivo, mais de instinto mais, mas mais animal que é ativado. E é. E é muito, muito interessante conseguirmos observar até com algum distanciamento o corpo a segregar esse tipo de hormonas, não é? Sim, que muitas vezes não.
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Então, adormecidas no nosso dia a dia, essas competências que nos são solicitadas diariamente são de outro nível, São. São competências, se calhar mais ardilosas, mais do ponto de vista social e intelectual. Aqui estamos muitas vezes a responder instintos muito básicos. Não é através, obviamente, de soluções técnicas. Mas como resolver? Como fazer o jantar? O meu fogão é uma placa, portanto eléctrica.
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Na verdade, toda a minha casa é eléctrica, nomeadamente tenho caldeira eléctrica, tenho fogão elétrico, essa máquina tem elétrica também? Tudo tem uma garagem elétrica cuja porta não abre. É verdade. E é este e essa disrupção. Disrupção que foi o que foi o apagão permitiu me sentir outras competências que muitas vezes não são colocadas ao serviço no dia a dia.
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Porque todas essas, essas funções mais básicas parecem estar naturalmente supridas, não é? Com. Com algum conforto tecnológico que nós conseguimos criar à nossa volta. E é e é muito interessante essa opção. E também é também a observação do outro face a ativação dessas competências mais inatas, mais primitivas, que são os outros. Olha, tu lembraste te subitamente, há um par de semanas de fazer a trouxa zarpar e ir até à Ucrânia.
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É verdade, Fazer o quê?
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Enfim, eu já queria muito ir à Ucrânia, por várias razões. Eu tinha escrito há relativamente pouco tempo uma série que entretanto estreou na TV, que se chama Mulheres às Armas, que conta exactamente o lado feminino da guerra colonial, ou seja, as mulheres que ficaram quando os homens partiram para o Ultramar, as mães, as namoradas, as irmãs também as viúvas, obviamente, e todos os papéis sociais que as mulheres tiveram a época de assumir no contexto, quer profissional, quer familiar e escrever essa história fez me, fez me refletir obviamente, sobre muitos, muitos temas, uns até bastante atuais, mas.
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Mas também fez me despertar para o facto de haver pouco reconhecimento do trabalho e do papel feminino nos diferentes conflitos mundiais. Fiz alguma ideia e houve aqui uma série de coincidências. Peço desculpa. Deixa me só concluir porque entretanto, numa viagem aos Estados Unidos a São Francisco, fui ao Museu de Arte Moderna de São Francisco. Estava lá uma exposição enorme sobre o papel feminino das mulheres americanas durante a Segunda Guerra Mundial.
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Portanto, houve aqui uma série de coincidências e uma das conclusões da exposição foi, efectivamente, que esse reconhecimento veio muito tarde e muito tarde. São 50 anos depois, mais uma vez houve aqui um acaso, não é? As mulheres que ajudaram no esforço de guerra americano na Segunda Guerra Mundial só foram condecoradas no final do século XX, portanto, já na década de 90, 50 anos depois do término da Segunda Guerra Mundial.
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E nós estamos agora a viver os 51 anos já do 25 de Abril. E de repente, eu tinha este projecto em mãos, que era olhar para a guerra colonial através do olhar das mulheres, das mulheres que mais uma vez assumiram estes papéis, mas que também foram uma falange muito ativa contra a guerra e que naturalmente todos sabemos. O 25 de Abril foi feito com botas de tropa calçadas.
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Não é pelos capitães de Abril, mas esses capitães de Abril também respondiam a uma ânsia muito forte das suas famílias, não? E das suas mães, das suas mulheres, das suas esposas, que estavam naturalmente cansadas de receber a bandeira de Portugal dobrada à porta, ou então ter de pagar o frete do caixão para regressar à Pátria. Portanto, esses homens foram naturalmente impulsionados por um coro de vozes anónimo.
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Foram atores daquilo que no fundo, era um sentimento global, esse sim, global e social, mas muito projetado e muito apoiado no feminino. E eu, como como escritora. Há vários tipos, obviamente de escritores, mas eu sou uma escritora que persiste por aqui. Aquele escritor que é o escritor da sua secretária, que não precisa de fazer o caminho para imaginar o caminho.
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Eu uma vez conheci um escritor holandês que estava numa grande discussão com um escritor italiano, porque os. O escritor holandês tinha tido a pretensão de escrever um romance que se passava em Itália. Mas sem conhecer efetivamente as cidades, os locais que descrevia. E o escritor italiano, dizia eles tu escreves coisas que são impossíveis. Só um holandês que não tem altos e baixos e colinas e curvas e é, e que acha que se pode chegar do ponto Y ao ponto X.
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No tempo em que tu descreves que a tua personagem o fez e soa a falso ou é legítimo? Eu acho que na ficção tudo é legítimo, mas eu sou do tipo de escritora que efetivamente precisa de palmilhar também porque lá está a minha formação em jornalismo e precisas de ir viver para contar, ser testemunha profissional, ser testemunha, cheirar se a.
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E é sempre difícil estar sentada na nossa cadeira, imaginar como é que seria ou como é que está a ser. E a verdade é que em todas, todas as experiências que eu tenho tido a realidade, de uma maneira ou de outra, surpreendo, me interpela e constrói sobre a minha imaginação. Ou seja, é uma espécie de combustível adicional para para competências que o escritor já por si não e que quer criar.
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Quero criar o universo. Onde é que foste eu? Portanto, eu voei para a Polónia, para uma cidade na fronteira da Polónia, uma cidade que é que é considerada? Se calhar está ao nível do que foi Lisboa durante a Segunda Guerra Mundial. É uma cidade onde há muitos espiões, quer do lado ucraniano, quer do lado russo. Portanto, todas as conversas são tidas com alguma formalidade e as pessoas no seu trato e na sua convivência são bastante reservadas.
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Fiquei num hotel onde praticamente só estavam militares de ocidentais. Depois a Ucrânia. Depois viajas cerca de 01h00 de carro até a uma estação de comboio, ainda na Polónia, e entras num comboio muito moderno, o equivalente, se calhar, ao nosso Alfa Pendular para uma viagem de cerca de 12h00 até Kiev. Atravessas o país inteiro, atravessas metade do país. E o que é que se sente exactamente nessa viagem?
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Por um lado, dentro de um comboio super moderno, mas por outro lado, sabendo que estás a palmilhar, a calcorrear quilómetros e quilómetros de um sítio onde pode cair uma bomba a qualquer momento. Sim, pela janela, normalmente apenas vemos campos de cultivo, pequenas aldeias. O comboio vai com luxos dentro, como vai com a luz dentro, tem televisões a passar, desenhos animados, mas a maior parte dos outros passageiros eram mulheres com crianças ou casais mais idosos.
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Nitidamente eram. Eram famílias que iam visitar militares, porque os homens, neste momento, entre os 18 e os 65 anos, não podem sair do país. Portanto, iam visitar a família. Eram crianças que iam ver o pai, Havia crianças a fazerem os trabalhos de casa que mães a darem lições de matemática, todos a verem os mesmos desenhos animados que a minha filha vê em Portugal.
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Em Lisboa. Uma estranha normalidade. Sim, absolutamente uma estranha normalidade. E as pessoas a falarem com com convicção, com graça. Eu aprendi que os ucranianos têm um enorme sentido de humor. Na verdade, eu acho que isso deve ajudar a ultrapassar um dia a dia de de em questão 100% do tempo em perigo. Não é a primeira. O primeiro momento em que em que eu percebi que estava numa zona de guerra foi quando, já no centro de Kiev e o centro de Kiev É muito bonito.
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Faz lembrar se calhar o centro de Praga em termos de construção e vi uma rapariga com umas grandes esperanças pela espádua, uma menina a tocar violino na janela e depois percebi que é uma coisa muito normal em Kiev. Há muita gente nas várias esquinas a tocar música. A música faz parte da formação elementar deles. Aliás, havia antes da guerra, um festival em Kiev em que eles põem vários pianos, espalham pianos pela cidade toda e as pessoas podem parar e tocar.
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Toda a gente tem praticamente formação musical. São pequenos públicos que estão todos os públicos disponíveis. E essa é essa mina. Estava a recolher a janela dinheiro e as pessoas paravam e contribuíam e percebi pelas conversas que o pai da meninas estaria na frente. E depois, quando cheguei ao hotel do outro lado da rua, tive de assinar um termo de responsabilidade que me dizia que cada vez que as sirenes tocavam, eu teria de ir para um abrigo, que neste caso específico do hotel, seria no parque estacionamento.
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De tanto descer do sítio onde tu estavas até ao parque de estacionamento. Exato. Sim, no -2 -2 que um e eu assinei efetivamente, mas sem ter consigo a ânsia de que aquilo era uma normalidade, de que estavam a falar a sério. Há sempre, há sempre, Há sempre um lugar meio surrealista, não é? Quando nós chegamos a um sítio destes em que há uma enorme disrupção daquilo que nós consideramos normal, sendo que a normalidade já é para eles, já é aquela.
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E tudo se precipitou quando, às duas e pouco da manhã eu acordo em sobressalto com as sirenes das antiaéreas a serem e a aplicação no meu telemóvel porque é obrigatório ter uma aplicação no telemóvel é sempre um alerta. Recebes um alerta, uma uma voz muito, muito marcial que te diz vá para o abrigo, apoio, abrigo e depois tens o mapa da Ucrânia toda vermelho, que acontece quando, por exemplo, um míssil balístico levanta na Rússia e nesse caso, todo o país fica em alerta vermelho.
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Portanto, são sítios. Neste caso, todo lugar onde aquele míssil pode cair nos próximos minutos e nos próximos segundos, porque um míssil balístico atravessa a Ucrânia enquanto escova os dentes. E isso e este nível de questão. E eu, atrapalhada, vesti e vestia o sobretudo por cima do pijama. A meio das escadas de acesso ao piso subterrâneo. Percebi que tinha por acaso o passaporte no bolso, mas comecei a passar por várias pessoas, principalmente ucranianas, que surgiam com enorme naturalidade.
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A rapariga da receção estava ao computador a jogar Scrabble quando eu passei por ela com as sirenes todas a tocar no bar. Havia música e risos. Porque as pessoas não levam a sério, Eu sei não. As pessoas já estão fartas de ouvir o alerta. Acho que há. Naturalmente, que estão fartas de ouvir o alerta. A questão é que eu acho que elas conjuram para ter uma vida normal.
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Efetivamente, este tipo de ataques, que são diários sucessivos, com interrupções muitas vezes duas ou 03h00 durante a noite, é uma forma de colocar todo o país sob tortura do sono, não é? E as pessoas têm os seus trabalhos, têm de levar as crianças à escola. O perigo é absolutamente real. Quando há um míssil balístico no ar, a pergunta não é se a pergunta é onde efetivamente ele vai cair?
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E as pessoas ganharam, Criaram algumas estratégias. Por exemplo, não dormem junto às janelas, dormem sempre com uma parede dentro entre elas e a janela. Há uma coisa que me comoveu bastante eu faço perguntas indiscretas às pessoas, portanto, comecei a perguntar aos casais essa alguma coisa tinha naturalmente mudado na vida delas e muitos referiam me que passaram a dormir com os filhos, mesmo já crescidos, adolescentes, todos no mesmo quarto ou na mesma cama, quase um ninho da família, se protegerem para si, para estarem juntos, para enfrentarem o que quer que seja em conjunto.
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A ideia de estarem separados ou em quartos diferentes quando há uma ameaça de um drone no ar ou não. Míssil balístico era algo que eles não conseguiam gerir do ponto de vista emocional, isso foi. Isso foi uma alteração no seu dia a dia. Mas. Mas a verdade é que a maior parte dos prédios em que vive não tem.
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Não tem estacionamento subterrâneo. Imagina o que seria ter todos os dias, duas em duas horas, ter as sirenes a tocar, ter de ir buscar os seus filhos à cama, vestir um casaco e descer para a rua, ir para uma boca de metro, por exemplo, para te protegeres. Nada disto, nada disto se compadece com o dia a dia normal em que as pessoas têm de continuar a trabalhar, têm de continuar a pagar contas.
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E é aconteceu comigo, nomeadamente houve pelo menos duas ou três vezes que houve uma sirene. Eu não tinha forma de ir para um bunker. Olha, uma vez, num sábado de manhã, 09h00, eu estava a tomar banho, portanto era mais difícil. A minha decisão foi pôr o amaciador, habituar se rapidamente à ideia de que eu tinha que inventar. Eu racionalizar e pensar eu vou estar aqui uma semana, tenho uma filha, portanto vou tentar ser o mais responsável possível e sempre que possa proteger me.
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Mas lá está, houve esta situação. Outra foi em que estávamos a sair de Kiev, no pára arranca do trânsito no dia normal de trabalho. O que é que vais fazer? Dar o carro, começar a correr pela autoestrada, percebes? E.
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Todos começaram de alguma maneira em corporizar este, estas e estas ameaças. A jogar, a jogar um bocadinho a roleta com os avisos. Não é como quem de sorte. Safar nos. No fundo, é a lidar e a lidar com o otimismo, com as estatísticas. E a verdade é que nesse mesmo dia em que eu estava a tomar banho, quando houve.
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O aviso do míssil balístico, nessa mesma noite fui a um restaurante apinhado de gente super moderno. Poderia ser nós em Nova Iorque, com música ao vivo e havia celebrações de aniversários, pedidos de casamento. Ou seja, as pessoas olham para o futuro de alguma maneira e tentam conjurar esse futuro e sobreviver. Da forma mais humana possível. A suas, a sua condição.
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Agora todas têm uma história já para contar. Todas já perderam alguém. E esse míssil específico desse sábado de manhã no Rio, em Kiev, mas caiu em Odessa numa altura em que havia um festival de música na rua e caiu a 100 metros de uma filarmónica e matou cinco pessoas. Ou seja, não é, não é uma ameaça menor, não é uma teoria, não é de todo uma teoria, ou seja, uma ameaça muito real, muito concreta.
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E há histórias que toda a gente conta e não consegue. Quem não consegue falar de determinados momentos sem que o alarme de alguma maneira extrema? Por exemplo, o ataque ao hospital oncológico pediátrico de Kiev em pleno verão, seja. E foi um momento que ultrapassa todas as linhas de dignidade. Portanto, é muito difícil as pessoas de alguma maneira esquecerem ou minimizarem o que se passou, porque é demasiado cruel.
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Mas a grande maneira que eles têm de resistir é através do seu dia a dia. Conheci uma senhora com alguma graça a dizer me que já tinha mudado os vidros da janela da marquise 15 vezes desde o início da guerra e os vizinhos faziam coleta de dinheiro. Uma espécie de vaquinha para pagar as contas, porque a frente da casa dela estava virada para uma fábrica de químicos nos arredores de Kiev.
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Portanto, eram ali. E ela dizia A tecnologia russa é tão má que eles nunca acertam uma porcaria de fato, que dão cabo das janelas. Com ondas de choque. Portanto, se queres ouvir, chegaste a ouvir bombardeamentos. E qual é a sensação de se ouvir Uma de que um míssil a poucos quilómetros, o míssil maior a drones a serem atingidos por anti-aéreas fazem e fazem um barulho.
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Consegue se ver? Consegues ouvir? Ver Sim, se vierem à linha de vista. Vê, sim, vês? A explosão no ar voou e é muito semelhante a um fogo de artifício. Por exemplo, eu que eu tive lá uma semana. Portanto, nada do que eu vivi pode não causar grande stress pós traumático, mas posso te garantir que na semana seguinte a vir, quando passava uma ambulância na rua, sobressaltava se.
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Eu sobressaltava, portanto. E é a naturalmente, estímulos que são incorporados. Portanto, a tudo aquilo vai deixar marcas durante décadas. Nós sabemos, não é a forma, por exemplo, como as famílias. Muitas famílias lidam com o tema, com as crianças mais pequenas e com a dignificação. Vamos fingir que isto é brincar via controle. É uma história quase assim. Silvina é bela.
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Conheci uma menina que achava que o pai tinha ido, que era maluca por pelo espaço, andava vestida de astronauta no meio da rua e eu meti me com ela exatamente por causa disso. E e dizia que achava que o pai estava a combater o extraterrestre, porque foi a história que foi criada para ir ao encontro do imaginário dela de maneira que ela conseguisse superar a ausência do pai.
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São, são estratégias, Não é? Obviamente, que esta forma de incorporar a guerra na normalidade te emociona das mais diferentes maneiras. Lembro me, por exemplo, de uma estátua feita artesanalmente, de uma forma improvisada, à frente de um café com invólucros balísticos. Criavam no conjunto uma árvore de Natal.
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E quase a associar, não é quase mesmo a associar a objectos semânticos opostos. Não é tentar uma redenção. Tu foste ver o que andas por onde, portanto, eu fiquei, Eve. E depois estive nas chamadas cidades mártir. Portanto, foram aquelas cidades à volta de Kiev, logo no início da invasão, em 2022, foram massacradas pelas forças russas e onde se foram foram perpretados vários crimes de guerra.
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O que se vê lá? Estranhamente, ou melhor, estranhamente, não. Incrivelmente, muitas já estão completamente reconstruídas, nomeadamente Mucha e acho que ainda temos todos aquela imagem daquela daquela rua repleta de cadáveres e de carros carbonizados. Você está completamente reconstruída e eles têm. As autoridades ucranianas tem feito um enorme esforço de não apagar o passado, ou seja, é estranho porque, ao mesmo tempo, como eu estava a dizer que ouvíamos as sirenes e os bombardeamentos, estamos a presenciar murais e memoriais que são erguidos às vítimas.
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Eles deixam lá sempre a memória, sempre a cicatriz. Parece que há uma digestão do acontecimento e o acontecimento ao mesmo tempo, é quase filosoficamente impossível, não é? É um paradoxo filosófico, Mas eu estou a conseguir fazer isto no próprio país. Portanto, taxa estás ao mesmo tempo que estás a ter mais vítima, estás de alguma maneira a relembrar as que passaram.
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Portanto, eles, eles têm a opção de não deixar esquecer, mas ao mesmo tempo construir uma forma de resistência. No fundo, não perdemos a memória, mas estamos aqui para nos aguentar e para resistir. Absolutamente sim. Tu sentiste o ódio daquela população ou de alguma maneira consegue separar claramente o que é uma guerra militar? O que é que o inimigo do outro lado, com com um povo que eles conhecem bem, que é o povo russo, são um povo como Portugal, Espanha, no fundo são povos irmãos.
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Genericamente, com as pessoas que eu falei, elas, elas percebiam a importância, defendiam a importância do conflito. Parece quase uma tautologia, mas basicamente o que eles me diziam era se você quiser a guerra para se nós pararmos, acabou a Ucrânia, portanto, é uma guerra de sobrevivência. É a diferença entre a paz e a capitulação. No fundo, não é. Olha o que estou a fazer.
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Eles não admitem a capitulação. O que é que vais fazer agora com tudo isto que viste, que aprendeste, que leste, trouxeste notas? Trazes os livros na bagagem para escrever? Ou ainda não pensaste o que é que vais fazer? E eu fui lá numa lógica de sentir com os poros muito abertos, portanto. Mas sei que tudo é combustível, portanto criativo.
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Neste caso, o olhar que cheira a guerra acaba. E acabei por escrever isso. Na verdade, eu acabei por escrever para a Visão um artigo longo, uma reportagem longa. Agora, o que é que cheira a guerra? Olha, o cheiro que me vem ao nariz é de monóxido de carbono. Eu explico porquê. Porque. No abrigo não há tela. Eles colocaram umas camas.
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Na verdade foi uma sortuda. Não é um abrigo com camas e com lençóis e com chá quente, mas era um abrigo montado no parque de estacionamento, portanto tudo cheirava a motor de carros. Então tu deitavas te e em que estavas a cabeça e o que cheirava era era monóxido de carbono. Portanto, para mim o cheiro da guerra é monóxido de carbono.
00:29:16:10 – 00:29:38:21
Entretanto, eu arranjei uma técnica de pôr sacos de chá no nariz para conseguir adormecer e na vez seguinte já estava bastante mais profissionalizado. Levei a minha própria almofada do quarto para verificar que fizeste isto? Leva a almofada. Olha tu como viajante escritora, levas um caderno, escreves no telemóvel, tomas nas notas, tens uma caneta. Como é que? Como é que é?
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Como é que tu és? Como? Como viajante? Eu normalmente parto sempre para as viagens com ótimas intenções. Eu levo blocos muito bem e canetas, uma coisa formal. O que é que acontece a seguir? Perco os blocos e as canetas? Vai fazendo umas sinergias a menos das notas ou nem por isso. Portanto, eu acabei por começar a escrever sempre no telefone e às vezes tiro fotografias a notas e outras vezes gravemente.
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Vídeos e publicações são para ti. Só por norma são para mim. Sim, são coisas, são, São às vezes associação de ideias. São coisas que depois são dúvidas que eu às vezes tenho e que depois, mais à frente são. São de alguma maneira respondidas. São pensamentos mais íntimos e, portanto, tentando ser metódica na minha abordagem. Depois acabo sempre por ter de recorrer ao improviso.
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É esta a minha história de vida e depois por nessas notas. E como é que cozinhas? Tudo pode ser contado ou não? Ou aprende se ou há uma luta de. Se por um lado, da vulnerabilidade daquilo que tu podes mostrar a tua criatividade do que do que misturas lá nessa panela e com os pozinhos de perlimpimpim. Mas há fronteiras de coisas que tu não te sentes confortável para contar, mesmo que seja de uma forma.
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Eu estou sempre limitada pelas minhas próprias capacidades de contar, não é? Portanto, até onde é que eu consigo ir, como é que. Mas é preciso torná las elásticas, certo? Tu consegues sempre esticar um bocadinho mais essa, essa capacidade. Eu Eu acho que quando nós estamos a falar de acontecimentos reais e de temas temáticas mais mais complexas, ou até no caso de uma experiência anterior minha, da escrita de uma biografia, não é?
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Temos de ter, naturalmente, um compromisso com um sentido de verdade. Eu vou chamar a verdade, porque sempre existe a tua costela de jornalista. Talvez sim. Ou então é só tentar ser o mais humana possível, não é? Portanto, aqui houve histórias na Ucrânia que me foram de alguma maneira entregues e se hoje vou partilhares, tem que ter a responsabilidade de perceber que tem de ir ao encontro do seu sentido de verdade, do seu espírito, do seu espírito, do seu sentido de verdade.
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E uma verdade é que há uma honestidade intrínseca daquela história que tu acabaste de ouvir. Sim, é buscar o seu, o seu âmago e é, no fundo, em última instância, dá la ao leitor. Da mesma forma como eu compreendi, porque há sempre este lugar poroso e cheio de feitos que sou eu por onde as histórias passam, não é?
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E é e é esse, é esse compromisso que eu tento, que o tanto que eu tento estabelecer não é, no caso, por exemplo, da biografia da Natália. Eu costumo dizer que os melhores biografados são aqueles que estão mortos e que não têm a família de crianças que eu tive e tempo foi. Eu tive sorte nesse aspeto. Este projeto demorou uns seis anos.
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Seis anos que se fazem seis anos para chegar na biografia da Natália. Ela é de Natália, que é uma figura maior, gigantesca, com muita coisa publicada. Mas seis anos é muito, muito tempo. Que Que método é que é que se segue? Foi a tua primeira biografia para publicar? A que foi? Sim, sim, Sim. Que método foi? Que método é que tu estudaste?
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Durante seis anos eu estive na companhia da Natália. Naturalmente que que perseguiu outros projetos e concluí outros projetos. Mas a Natalia foi esta. Esta corrida de fogo não é esta. Esta maratona. Eu tenho um problema enorme, Jorge. Eu tenho uma enorme incapacidade de dizer que não há desafios e esse é gigantesco. É, mas com uma certa, com uma certa, se calhar uma certa leveza e até se calhar até leviandades.
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Não é porque? Porque eu quando aceitei o projecto não fazia ideia onde é que me estava a meter. Estamos todos ser muito sinceros e mas acreditando em forças mediúnicas que a Natália dizia que era. Se calhar houve aqui também uma escolha dela, que tinha uma força mediúnica. A Natália tinha sentido telúrica. Não é surpresa. Antes texto tinha esse lado mais espiritual.
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Não, Ela até tinha mesas, fazia mesas de pedra lá em casa, invocava os arcanos, mas deixou se disso quando uma delas, em cabelos e partiu a costela numa visita. Mas porque houve aqui uma série? Mais uma vez de coincidências que me empurraram para este projecto e às vezes nós também. Eu não sou propriamente muito espiritual, mas quando as coisas parecem tão organizadas, são óbvias.
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Alguém preparadas para mim são óbvias. Quer dizer, quem sou eu para dizer que não, para criar aqui algum tipo de obstáculo? Tudo começou, na verdade, quando eu tinha 22 anos. Porque? Porque o meu primeiro projecto sobre a Natália foi uma série que se chama Três Mulheres que passou na RTP, sendo essas três mulheres Natália Correia Abecassis, a Editora Nórdica da Dom Quixote e a Maria Armando Falcão.
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E este projecto veio parar às minhas mãos através de um convite do realizador Fernando Vandré. Eu nunca tinha escrito um argumento na vida. Na verdade, quando tal, eu iniciei muitas coisas importantes. Se disse escrever logo é um argumento de uma série com três mulheres absolutamente fantásticas. E vai ser para escolher. Vamos criar logo em grande. Tal e qual não era.
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Era um início bastante auspicioso e eu tinha lido o meu primeiro romance. Daí eu dizer que esta história começou comigo aos 22 anos. O meu primeiro romance chama se Chama se Elogio do Passeio Público e é sobre uma fantasia sobre o Estado Novo, portanto, em que de alguma maneira, ridicularizou apatetado, aquela sociedade quase infantilizada da ditadura. Não é da porteira que gosta de bisbilhotar, do tipo do café que que é o informante da PIDE.
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Portanto, toda aquela mesquinhez que era alimentada por um por um, por um governo na segurança. Pequenez. No fundo, exactamente. Não é por um, por um governo, é por um Estado autocrático. E o Fernandes leu esse livro. Ele queria emprestar esse lado, mas mais humorístico, mais de crónica de costumes. A série que efectivamente tem é e desafiou me para o projecto.
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E foi assim que eu comecei esta minha viagem com a Natália e eu. Durante o projecto nós sendo um projecto de ficção, obviamente, mas este teve muito trabalho de investigação. Falámos com muitos contemporâneos da autora, infelizmente alguns já morreram até determinada altura. Parecia que havia uma espécie de de mau olhado. Nós falámos com alguém e eu passado uma semana morria.
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Eu dizia ao Luís Alvarães com quem eu escrevi O que é que se passa lá? Não vamos falar com mais ninguém. E é, mas foi. Foi uma, foi enorme privilégio. Todo esse processo foi enorme, privilégio. E quando o Rui Couceiro Editores, a época do Contraponto, quis lançar uma colecção de grandes biografias de figuras da cultura escrita por romancistas, um pouco à semelhança do que já vemos há muitos anos no mercado inglês, por exemplo.
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E é algo relativamente inédito no mercado português. Eu tinha alguma segurança que pelo menos tinha uma visão global de conjunto da vida daquela mulher e subitamente, que achava eu, soterrada pelas pelo tamanho e pela densidade e pela quantidade e qualidade de material que encontra, assim também. E depois há testemunhos que consegui recolher, mas a verdade é que o espólio da Natália está muito, muito bem preservado nos Açores, na guarda da Biblioteca Pública do Ponto Delgada.
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É um espólio integral. E não há. Não havia fronteiras. Há limites para a minha investigação. O que eu aprendi com a Natália eu tive. O que é que eu aprendi com a Natália? Eu aprendi várias coisas com a Natália em diferentes momentos. Eu, principalmente, aprendi a enorme necessidade de compreender uma figura no seu lugar, ou seja, uma das.
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Uma das minhas grandes preocupações ao longo do processo é e é também, respondendo à tua pergunta sobre o que é que devemos, ao que é que não devemos contar. Era dar toda a informação que eu tinha para que o leitor conseguisse compreender os gestos e os comportamentos daquela mulher naquele momento específico. Uma mulher, no seu contexto, não só no seu contexto histórico.
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E a verdade é que a história de vida da Natália também é feita muito em diálogo com a história do país. Não é, portanto, contar a vida da Natália também contar a história do século XX português e os seus principais acontecimentos políticos e culturais, sendo que ela ocupa muito espaço, era muito vocal, era muito corajosa, era muito forte e dizia Eu estou aqui e agora vou me ouvir, porque eu penso coisas sobre isto e sobre aquilo e sobre o outro.
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Portanto, era genericamente incómoda. Era genericamente incómoda para alguns e até para pessoas em lugares opostos, quer politicamente, no mesmo momento. É muito fácil odiar e amar a Natália na mesma página da biografia. E eu acho que o que ela mais me ensinou foi isso, foi a conciliação de opostos e perceber que esses lugares não se deviam muitas vezes a contradições, mas deviam.
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Devia sobretudo ao seu contexto mais uma vez. Ou seja, era necessário percebê la, mas também o seu lugar íntimo em cada, em cada fase da história. Não é? Como é que é uma pergunta, não é? Como eu sei? Como é que uma figura que que foi a autora mais censurada da ditadura, que foi condenada em tribunal, a que foi humilhada pelo regime das mais diferentes maneiras e logo a seguir ao 25 de Abril, considerada reacionária.
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Como é que alguém que é censurado antes do 25 de Abril é logo censurado? Imediatamente a seguir e depois, mesmo já com a democracia estabelecida, consegue ser perseguida politicamente. Ou seja, ela manteve se no mesmo sítio. O contexto é que foi mudando. Sim, e muito isso. É muito importante ver quais foram as ventanias que de alguma maneira, percorreram o país nos diferentes momentos, para, ainda que não concordando até com ela, percebemos a sua coerência.
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Não é porque, no caso específico da Natália, seu grande país partido era a liberdade. Não é isso e isso ninguém lhe perdoava. Não é que aqueles que queriam controlar dificilmente podiam, podiam sim. Ela não conseguiria adaptar o corpo aos partidos partidários, por exemplo, não é? E depois era uma mulher muito arrebatada. Ela era no sentido de que havia coisas, nomeadamente a paixão romântica, mas no seu lado, mas mais aspiracional.
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Até que que a motivavam. E um exemplo disso foi, por exemplo, o grande caso de amor de Sá-Carneiro com o senhor. Não é que ela é uma espécie de madrinha dessa união? E foi na verdade, por causa disso que ela se juntou ao PSD. Portanto, parece me que via o amor pode ser sempre a melhor razão para se fazer qualquer coisa.
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Havia sempre este lugar de enorme racionalidade nos seus argumentos, contaminado por uma enorme actividade, uma grande poesia, portanto. Olha, estamos em 2025 e houve sempre falar muito sobre o papel das mulheres neste neste mundo. Como estão as mulheres neste mundo e já estão a fazer aquilo que querem? Não estão? Estão com dúvidas e não para a frente ou para trás?
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Já ocuparam esse espaço? Não reparam que é que está a acontecer? Eu acho que o caminho não é de sentido único. Nas horas que se passa é que muitas vezes vemos aquelas estatísticas faltam, faltam um século e tal e meio para que? Para que haja igualdade dos sexos. Efetivamente, que acredito eu, daqui a cinco anos pode só faltar 20 anos ou também pode faltar 300?
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Estamos numa altura de aceleração ou de travagem, de estarmos de direitos das mulheres, de absoluta travagem, de retrocesso? Não tenho qualquer qualquer dúvida. Acho que há pouco estava a falar da série Mulheres as Armas e há uma que é sobre o lado feminino da guerra colonial, como tu diz. Mas uma das do meu, dos meus pontos de honra foi não fazer uma série, à semelhança de muitas e com qualidade, que terminasse na grande festa do 25 de Abril.
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Como se o 25 Abril fosse uma espécie de panaceia para todos os males. Agora vai tudo ficar bem, quando na verdade foi o início. Não é de um caminho que não é um caminho de sentido único. E nós todos os dias, diariamente, assistimos a retrocessos. Como é que é possível que o crime mais praticado em Portugal seja o assassinatos na esfera privada de mulheres, não é?
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E que isto não seja um tema de campanha, quando agora estamos em campanha eleitoral E já agora, podemos dar o contexto. Nós estamos a gravar na sexta feira antes das eleições, o programa irá para o ar a seguir às eleições. Portanto, estamos à vontade. Os temas importantes, lá está, esses que tocam, estarão completamente ao lado. Ninguém fala sobre isso, ninguém fala sobre isto e acompanha um bocadinho.
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Nossa, enquanto eleitores e cidadãos que não estamos a exigir a quem se propõem a uma campanha eleitoral dizer ok, olhe, este me deste problema. E aquele e aqueles são os temas que me interessam e eu quero ouvir sobre isso. Eu acho que o ato de votar vem sempre associado a responsabilidades, mas inevitavelmente, há também de apontar o dedo a quem?
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Aos decisores políticos que nunca colocaram este este tema na agenda de uma forma tão premente não é? Porque muitas vezes os temas mais óbvios, que não mexem com as emotividade dos que são temas de uma enorme racionalidade, não, não, não trazem dividendos políticos. Mas achas que é uma espécie de tabu discutir aquilo que se passa dentro da casa de cada um?
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Eu acho que ainda estamos muito herdeiros desse tipo de de mentalidades, não é? Acho que acho que, mais uma vez, harmonizando contrastes, há aqui duas características que me parecem conflituantes, mas que na verdade subsistem e que é que resistem mutuamente, Que é uma enorme curiosidade sobre a vida alheia. Continua uma coscuvilhice, uma coscuvilhice mais ou menos saudável, o não olhar pelo buraco da fechadura, ao mesmo tempo que há temas que parecem temas sagrados e que não podem ser abordados na.
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Entre o tabu e a curiosidade de perceber o que é que se passa naquele escurinho e depois achar que há uma nova tendência que não deve ser de todos menosprezada e que se a ser agravada com as redes sociais de de até do ressurgimento e da valorização de um ideal da romântica da romantização de papéis sociais tradicionais. De repente eu tenho enteados entre os 14 e os 20 e poucos, e eu dou por eles a verem vídeos nos Instagrams e nos tops de de mulheres que romantizam a vida doméstica, pôr na máquina e a roupa no tambor e fazerem e fazerem uso e fazerem o jantar do marido.
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E naturalmente que as pessoas são livres de fazerem escolhas, mas têm de ter uma enorme consciência de que aquele vídeo feito daquela maneira está a vender um estilo de vida. Portanto, é um gesto político e é. De alguma maneira, estão a contaminar uma geração e isto é efetivamente um. Está a haver uma construção ideológica de um discurso que atinge muito diretamente os direitos conseguidos pelas mulheres.
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Há aqui uma polarização. No fundo, há a discussão entre o que é que são direitos e o que é que são matrizes sociais mais antigas ou mais modernas? Sem dúvida. E, portanto, quando tu me perguntas se o papel da mulher está garantido, não está de todo. E isso também se vê através de estatísticas e dados oficiais, não é?
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Quando tu olhas para o aumento exponencial de violações, quando sabes que 80% desses casos são a vítima, é feminina, portanto, é uma mulher. Quando tu olhas para o aumento de e agora ainda bem criminalizados de casamentos na adolescência e mais uma vez o elemento mais novo e feminino. Portanto, já referimos aqui a violência doméstica. Há aqui um padrão.
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Quer dizer, este padrão não pode ser, de alguma maneira esquecido ou não, não pode ser de alguma maneira esquecido pelo discurso político e social, não é? Portanto, estamos numa zona de risco. Estamos em que estamos praticamente a fechar O que tu falta escrever, O que é que andas a escrever, O que é que te apoquenta e o que é que te apaixona Para estes dias Estou a escrever uma próximo romance, portanto vou voltar à ficção em livro.
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Mais uma vez a mastigar o tema da memória. Volta sempre para o teu caso. Sim, parece que andamos sempre a escrever o mesmo livro, não é? Costumava que alguns escritores têm essa, tem esse perfil, mas acho que vai ser, não sendo de todo um livro autobiográfico, não é? Eu, e parafraseando o Manoel de Barros, que dizia que 80% do que eu escrevo é imaginação, só 20% é que é mentira.
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E é. Mas tudo não sendo autobiográfico e tudo sendo autobiográfico, é provavelmente o meu romance mais pessoal, portanto, em que vou, em que vou buscar um bocadinho da minha ascendência, das histórias das mulheres, da minha família e contos que saia este ano, no início do próximo, no máximo, para conseguirmos ler. Filipe, muito obrigado. Eu é que agradeço. Acho foi muito bom.