O que é a comida? Ricardo Dias Felner

O que é a comida? Ricardo Dias Felner
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Sim, chef, pronto chef. A sair, chef

Portugal é um país que come por prazer. Não tenho dúvidas.

Às vezes temos mais olhos que barriga. Outras vezes não temos barriga para tanta gula. Ou temos demasiada gula para tão pouco dinheiro para gastar restaurantes mais estrelados que os ovos.

Comemos e falamos do que comemos. Fazemos disso um ritual, uma celebração. E é fácil perceber por quê. Somos um país pequeno, com uma cozinha rica e variada, construída por séculos de encontros e desencontros com o mundo.

Cada povo que nos invadiu, cada imigrante que chega ou emigrante que regressa traz um livro de receitas. E os misturamos tudo e reenviamos sabores.

A comida, para os portugueses, é muito mais do que aquilo que se mete no prato. É aquilo que se conta à volta dele.

Dizem que nós, portugueses, somos bons a queixar-nos.

Digo que somos bastante bons a falar de comida.

Porque não há prato que não mereça um comentário, um elogio ou um desabafo.

Ao almoço falamos do que vamos comer ao jantar.

E todos sabemos que os grandes problemas do mundo resolvem-se não numa reunião, mas à volta dos comes e bebes.

Podemos estar na conversa mais séria do mundo — e de repente aparece alguém a dizer que descobriu um restaurante incrível numa aldeia perdida que faz o melhor cabrito de sempre. E toca a organizar uma expedição ao dito sítio.

Ou que o arroz de polvo da mãe é impossível de bater Que a carne de porco à alentejana que comemos na festa de aniversário do amigo do amigo era má, péssima, incomestível. Mas já que lá estávamos, comemos, claro..

E quando não é o prato, é o preço.

Ou como o serviram. Ou a espera, que foi longa demais.

Ou o facto de, naquele restaurante, não aceitarem reservas e termos ficado 40 minutos à espera, para depois nos sentarem numa mesa junto à casa de banho. Ou na porta. Ou, pior, ofenderem.nos descaradamente dizendo: já não há lugar para si,

Mas isto é Portugal.

E com jeitinho tudo se desenrasca.

Os portugueses falam de comida como falam do tempo ou do futebol. Porque a comida, para nós, é mais do que sabor. É identidade. É memória. É território. É desafio e tradição.

Há quem ache que, neste país, o bom e barato acabou.

Que agora se come bem, mas paga-se um balúrdio.

Outros defendem que as tascas continuam a existir, contudo é preciso procurar melhor.

O que é certo é que as referências mudaram.

Há 30 anos, um bom restaurante era o que servia muito e barato.

Depois passou a ser o que tinha um prato bem-feito, com sabor e sem grandes artifícios. Agora, é o que nos tira uma fotografia bonita para as redes sociais. Que nos serve um prato que queremos partilhar com o mundo, mas que vamos comentar com os amigos ao vivo, numa esplanada, enquanto pedimos um fino e uns tremoços.

Porque, se há coisa que o português gosta, é de contrariar a moda. Dizer que já foi a esse restaurante de que todas as pessoas falam e não gostou. Que a nova estrela Michelin o deixou indiferente. Que o menu de degustação não vale nem metade do que cobram. “Comia melhor na minha aldeia por metade do preço”, é uma frase que já ouvimos todos, mais do que uma vez.

E depois há as comparações. Porque o português gosta de medir. O melhor pastel de nata. A melhor bifana. O melhor arroz de pato. A melhor feijoada. A melhor chanfana. A melhor caldeirada.

Discutimos comida como se discutem jogadores de futebol. “O melhor é o meu”, dizemos, com um orgulho que só quem gosta de comer compreende.

Mas o mais interessante é que, mesmo quem não sabe cozinhar, sabe falar de comida. Sabe avaliar. Sabe criticar. E sabe dizer, com a certeza de um especialista, que o bacalhau estava seco, que o arroz de tomate precisava de mais caldo, que o polvo estava tenro, mas podia ter mais sabor.

Talvez seja por isso que temos tantos chefs talentosos. Porque, desde sempre, fomos educados a ter opinião sobre o que está no prato. Seja o cozido à portuguesa da avó, seja o ‘sushi’ de fusão daquele restaurante da moda, seja o café que nos serviram à pressa, com espuma a mais e sabor a queimado.

A gastronomia portuguesa é feita de contrastes. Entre o tradicional e o moderno. Entre o barato e o caro. Entre o gourmet e o que se come na tasca.

E é feita, acima de tudo, de histórias. Porque, quando um português fala de comida, raramente fala só de comida. Fala do que aconteceu antes, do que se passou durante e do que ficou depois. Fala do caminho para chegar ao restaurante, da conversa que teve à mesa, do prato que pediu porque tinha saudades da infância.

E, depois, há a simplicidade.

Porque a nossa cozinha é de improviso, de aproveitamento, de invenção. O que fazer com o que há. As sopas que nascem do fundo do tacho. As pataniscas que se fazem com o resto do bacalhau. O arroz que se estica para dar para mais um. A comida que se partilha, que se reparte, que se recria.

E o curioso é que, mesmo com tanta conversa, com tanto julgamento, com tanta comparação, continuamos a gostar de descobrir. Continuamos a procurar o melhor peixe grelhado, o pastel de nata mais cremoso, a sopa de peixe que nos faz lembrar o verão.

Comunicar comida é comunicar o país. Porque Portugal é um país que gosta de comer e que gosta de falar sobre o que come. Às vezes, parece que nunca estamos satisfeitos. Que estamos sempre à procura do próximo prato perfeito, do próximo sítio que ninguém conhece, do próximo segredo que vamos partilhar — mas só com alguns, claro.

E é por isso que vale a pena continuar a falar sobre comida. Porque, mesmo quando nos queixamos, mesmo quando dizemos que está tudo a piorar, a verdade é que adoramos esta conversa. E continuamos a ter fome de mais.

Deixemo-nos guiar pelo Ricardo Dias Felner

Ricardo Dias Felner,

Nascido a 18/06/76, começou a trabalhar como jornalista em 1998, no jornal Público, tendo passado pelas secções Política, Local, Sociedade e Nacional. 

No ano de 2003, venceu o prémio de Jornalista Revelação do Ano, do Clube dos Jornalistas, com o trabalho “A favela aqui tão perto”, uma reportagem sobre o bairro da Cova da Moura. Como jornalista do Público abordou assuntos ligados à Administração Interna, à Justiça e à Imigração, bem como ao jornalismo de investigação na área da Política. 

Em 2006, ganhou o prémio do Alto Comissariado para a Imigração e Minorias Étnicas, categoria de imprensa, com uma investigação sobre os gastos dos imigrantes nos processos de legalização e toda a burocracia envolvida. 

Ainda em 2006, publicou o livro “Voltar a ser Médico” (edição da Fundação Calouste Gulbenkian), em parceria com o fotojornalista David Clifford, onde são contadas histórias de vida de médicos imigrantes que vieram trabalhar para Portugal em sectores desqualificados e que, anos mais tarde, acabaram por conseguir voltar a exercer a sua profissão. 

Foi convidado para ser repórter da revista Sábado, em agosto de 2009, onde esteve até 2013. 

Voltaria a colaborar com a Gulbenkian como autor do livro “Vencer cá Fora”, desta feita sobre imigrantes que se destacaram como empreendedores em Portugal.

Em 2013, transferiu-se para a direção das revistas Time Out Lisboa e Time Out Porto, onde permaneceu até dezembro de 2016. Nesta última fase especializou-se em jornalismo gastronómico, coordenando essa área da revista e escrevendo crítica de restaurantes, assuntos sobre os quais já vinha tratando no blogue O Homem que Comia Tudo. 

Com o mesmo nome, publicou um livro (2020, Quetzal) e estreou em 2024 um programa no canal de televisão SIC. 

É doutorando no Departamento de Ciências da Comunicação do ISCTE, onde está a trabalhar num projecto sobre a comunicação internacional da gastronomia portuguesa. 

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