Há histórias que parecem começar com um silêncio absoluto.
Um silêncio que não é apenas a ausência de som — é a ausência de luz, de perspetiva, de chão.
O que acontece quando a vida apaga o ecrã que julgávamos indispensável para nos orientarmos?
Como se comunica quando os olhos já não podem dizer o que o corpo sente?
Este episódio do Pergunta Simples é sobre um desses pontos de viragem. E é também sobre a força de uma voz que se recusa a ser reduzida a uma condição.
Ricardo Miguel Teixeira perdeu a visão na passagem da adolescência para a idade adulta. Tinha 18 anos, uma vida por desenhar e uma expectativa de normalidade igual à de qualquer jovem da sua geração. Subitamente, foi confrontado com a escuridão e com o peso do preconceito. Não apenas o preconceito social — das alcunhas, do paternalismo, da exclusão — mas sobretudo o preconceito linguístico. As palavras com que a sociedade olha para a diferença: “coitadinho”, “inclusão”, “tolerância”. Palavras que parecem bondosas, mas escondem distâncias e barreiras invisíveis.
Ao longo desta conversa, emergem três grandes lições sobre comunicação:
Primeira lição: a linguagem não é neutra.
Aquilo que dizemos molda como percebemos os outros. Ao chamar “coitadinho” a alguém, não descrevemos apenas uma condição; inscrevemos essa pessoa num lugar de subalternidade. A comunicação, aqui, torna-se uma ferramenta de poder. Ricardo lembra-nos que é possível inverter essa lógica com humor — usando a comédia como contranarrativa, desmontando estereótipos e criando espaço para uma relação mais verdadeira.
Segunda lição: comunicar é também aprender a ler o corpo.
Numa sociedade visual, esquecemo-nos de que a comunicação não passa apenas pela vista. Ricardo, que trabalha com bailarinos e artistas, mostra como os gestos, o ritmo, a respiração e a ocupação do espaço são formas de linguagem tão ricas quanto a palavra. Ensinar de olhos vendados, como faz nos seus workshops, é ensinar a escutar o corpo. É perceber que comunicar não é só falar, é também sentir e interpretar sinais invisíveis.
Terceira lição: comunicar é criar redes.
A comunicação não existe sem eco. Ninguém constrói um percurso sozinho. Amigos, família, colegas de trabalho — todos formam a teia que sustenta as histórias individuais. Ao longo da vida, Ricardo aprendeu que pedir ajuda não é um gesto de fraqueza, mas de inteligência comunicacional. Reconhecer a interdependência é reconhecer que o diálogo é sempre um exercício coletivo.
Este episódio não é apenas sobre a cegueira ou sobre a superação pessoal. É sobre a forma como olhamos — e falamos — uns com os outros. É sobre o risco de transformar a diferença em rótulo e a necessidade de a integrar como normalidade. É sobre como as palavras que escolhemos podem abrir portas ou fechar mundos.
Na tradição das grandes crónicas radiofónicas, esta é uma conversa que não se limita a narrar uma biografia. É um ensaio vivo sobre linguagem, sociedade e comunicação. É um convite a pensar até que ponto cada um de nós, no quotidiano, contribui para a exclusão ou para a aceitação.
Ricardo Miguel Teixeira traz-nos, em registo cru e sem filtros, a memória da dor, mas também a ironia que salva. Usa o humor como ferramenta crítica e pedagógica, recusa o conforto do politicamente correto e insiste na urgência de aceitarmos a diversidade sem diminutivos, sem piedade, sem paternalismo.
No fundo, este episódio responde a uma pergunta central:
como comunicar melhor num mundo onde a diferença ainda é olhada de lado?
Fique connosco. Vais descobrir que, às vezes, é preciso fechar os olhos para aprender a ver — e a comunicar — de forma mais humana, mais justa e mais verdadeira.
Este episódio do Pergunta Simples mostra como a linguagem e o humor podem mudar a forma como olhamos a diferença. A missão do programa é simples: aprender a comunicar melhor. Partilhe a sua opinião, deixa comentários e ajuda-nos a levar estas conversas mais longe.
LER A TRANSCRIÇÃO DO EPISÓDIOViva Ricardo Miguel Teixeira, muito bom dia. Humorista, és argumentista e recuperas,
recuperas e lesões, lesões de performers, de artistas, de
pessoas que precisam de dançar. Trabalho com bailarinos, precisamente com bailarinos. Não trabalho só com bailarinos, mas
maioritariamente. Sim. E eles são difíceis quando pessoas ou pacientes? com pacientes são impacientes.
Não são impacientes, são persistentes no trabalho deles. Podem ter uma fratura,
uma rotura, vão para palco na mesma. Não interessa. Eh, raramente aparece um bailarino a dizer: “E pá, não quero
trabalhar por causa disto”. O objeto muitas das vezes o trabalho é fazê-los, é convencê-los de que têm que estar
parados a parar, porque não podes fazer isso. Tá quieto. É muito, mas é muito difícil isso. É
muito difícil porque eles ficam frustrados. Já quero falar desta parte do teu trabalho. Tu usas a ferramenta humor no fundo para
afastar os teus fantasmas, imagino, para te recuperares, porque há um acaso, um
acidente ou um duplo acidente na tua vida que te retira a visão. Queres-me contar essa história desde o início? Eu
eu nasci sem problemas oftalmológicos, mas com 7 anos perdi a visão do olho esquerdo porque pronto, parti a cabeça.
Um foi um um embate muito forte para com descamenteo retina no olho esquerdo. Ainda muito ainda ainda fiz cirurgias
ainda tentaram recuperar não foi recuperável na altura. Eh, portanto, aos 7 anos fiquei fiquei cego do olho
esquerdo. Depois o que é que te lembras dessa altura? Ah, dessa altura não tenho assim grandes
memórias. Eu eu eu descobri, eu percebi que tinha que não estava a ver do olho
esquerdo a brincar porque estava a espreitar por um tubo e
punha-me a espreitar por um por um olho e pelo outro e e reparei que quandoitava pelo olho esquerdo não via. Hum.
É assim, era um miúdo perfeitamente normal. Era um miúdo que, pronto, fazia, era um miúdo de 7 anos normal. Pronto,
andava sempre lá para outro, sempre a correr, sempre aquelas coisas normais. Depois, hã, comecei a ter alguns
problemas mais tarde no olho direito, h, que começaram a surgir também devido a
esse, a esse pancadão que dei na altura. Hum, começaram a surgir uma série de
outros problemas. Tive um desculamento de retina, também comecei a ter problemas de tensão ocular, portanto
glaucoma e tive que ser operado também ao olho direito. Aí correu tudo bem,
fiquei fiquei a ver bem. Eh, fiquei com marcas muito visíveis no olho, que que
foi foi ótimo para a adolescência, né? Hum. Para a tua autoestima também, imagino.
Para tudo, para a autoestima. E porque é pá, adolescentes, principalmente ali entre os 13 e os 15, 16, são aquilo que
são, não é? Portanto, eu na escola durante todo esse período, eu até aos meus 18 anos, hum, em três escolas,
portanto primária e no secundário do quinto ao nonº fiz numa escola, depois ao 10º fui para outra.
O que é que acontecia? Era por causa dessas marcas. Neste caso era uma marca, o olho direito estava visivelmente saliente devido ao glaucoma. Eh, e pá,
bocas e nomes, alcunhas, era todos os dias. Isso era certinho. Pronto, desde
manhã à tarde, desde que entrava na escola, praticamente até que saía. Isso era de maltrato. Sim, sim, sim. Eh, era o olho morto, o
olho vivo, sei lá. Era, pronto, era todo um todo um dicionário de de nomes
e a linguagem pesa, obviamente. Eh, sim, mas pesavam mais às vezes a questão física, porque também acontecia.
HH de vez em quando vinham assim carícias a alta velocidade, bati-te, chegou a acontecer. Chegou, cheguei a
ser agredido por causa disso na escola e na rua. Portanto, sim, portanto, sem sem nenhum
motivo, não era aquele, é aquele era aquele h uma lógica quase social
daquela comunidade de de bater naquilo que é mais fraco. É um bocadinho, é um bocadinho porque depois eu isolava-me também, não é? e
não não repostava, não não respondia, não depois passei a responder e houve
uma vez ou outra que que que respondi fisicamente, mas já assim para aí com 17
anos, 16, 17, começou assim a ferver um bocadinho, não é? E a paciência começou-se a a esfumar.
E o círculo dos teus amigos, lá está, tinha um um núcleo pequeno, mas forte.
Normalmente é sempre assim, né? são são núcleos pequeninos. Tinha e tenho ainda um um dos meus melhores amigos, um
grande amigo meu que pá conhecemos desde os 5 anos, desde a prim, desde a pré-primária, 5 se anos.
H, que sempre se manteve comigo, eh, sempre se manteve perto de mim, sempre
me ajudou tremendamente. Depois, mais tarde, conheci uma amiga minha com 17 anos. Aos 17 anos
tínhamos os dois, que ficou uma irmã até hoje. Hã, e ela apanhou precisamente,
ela conheceu-me e poucos meses depois eu perdi a visão, portanto ela apanhou ali aquela transição. Hum.
E e um outro amigo meu que eh vive agora tá a viver na Alemanha já há uns bons anos fomos colegas, conhecem-nos no 10º
ano quando mudei de escola. Hum. Hum, foram assim naquela altura, foram assim,
eram assim os três fortes, eram assim os três e fora
amigos, eram assim aqueles três fortes. Os meus pais tiveram sempre presentes, sempre, sempre, sempre, sempre. Eh,
deram-me sempre toda a ajuda, todo o apoio que que podiam dar, que que conseguiam dar. Hum,
mas lá está, o meu período de escola eh foi,
eu não quer dizer traumático, porque não guardo traumas dessa altura, não guardo rancores dessa altura. Eh, mas foi foi
puxadote, porque assim, vontade de ir à escola depois era nenhuma, não é? E isso chegou-se a refletir nas notas,
obviamente, não é? Eh, porque vontade de estudar era, n, eu sempre fui
um miúdo de apanhar muito de ouvido. Eu não sabia estudar, eu próprio dizia que não sabia estudar. Eu era muito de
apanhar ouvido. Tudo o que apanhasse ficava. HH Só que depois, lá está, para já era
altamente seletivo nas disciplinas. as minhas a pauta das minhas notas ou a minha pauta parecia sempre uma montanha
russa de um bêbado porque disciplinas que eu gostasse era tinha notas
altíssimas e nas outras queridas lá as outras era um abismo desgraçado e por ali abaixo com uma pinta que tipo nem se
via aquilo nem estava no negativo aquilo estava menos negativo olha o que é que te acontece aos 18 anos
aos 18 anos neste caso foi ali aos 17 18 tive um um descontrole brutal muito
grande na no na tensção ocular ocular, nos níveis de tensão ocular, que deixou de ser controlável controlável e com
medicação. Hum, fiz vários tratamentos e nada resultava.
E então vais fazer uma cirurgia? E vou fazer mais uma cirurgia. Percebeu-se qual era a causa. A cirurgia
correu muito bem. O pós-operatório foi um desastre. Fiz uma hemorragia gigante.
Hum. Hum. E basicamente foi foi o que o o que borrou a pintura toda, o que estragou tudo, porque a nível celular
toda a estrutura do olho ficou inundada de sangue. Pronto. E basicamente foi isto aos 18 anos. Foi ali na transição,
17 18. Hum. Foi nessa altura que perdi a visão. O que é que o que é que se sente? O que
é que se sente? O que é que se pensa num num momento em que acontece uma uma desgraça dessas? Mas que a palavra é
essa? Eu eu passei eu tive ali três três 4 anos de luto. Três anos em que
praticamente não saía de casa, fazia muito, saía muito poucas vezes de casa, convivia com muito poucas pessoas, a não
ser, lá está, a família direta, eh estes amigos que que eu falei há bocado, que eu disse há bocado e pouco mais, eh,
algumas pessoas que também nos eram próximas, a família, como é óbvio. Hum, o que é que se sente? O que sente foi eh
quase um acabou. Eh, isto não é nada, isto não não é vida, isto não é nada,
mas eu tinha eh ali uma expectativa muito grande de ou amanhã ou para a
semana ou daqui a um ou dois meses vou voltar a ver. A ciência pode vai inventar uma coisa qualquer para
ou isso ou eu acordava a ver uma coisa qualquer. Não não não me interessava o que era. Havia uma expectativa de vai
acontecer. Tanto que eu dava por mim, eu hoje olho para trás e eu dava por mim, odeio por mim a a fazer planos para
quando voltasse a ver, porque 18 anos é aquela altura em que um miúdo, uma pessoa vai, ok, vou tirar a carta, não
sei quê, a faculdade não sei quê, pá, e isto é, pronto, tirar a carta não é possível, mas faculdade obviamente é
naquele momento, eu fiquei sem força para rigorosamente nada. eh motivação, a eh a vontade fosse para o que fosse,
desapareceu completamente e ir para uma associação, por exemplo, uma
instituição de pessoas cegas, para mim estava completamente fora de questão. Porquê? Porque para mim era um assumir de que
não ia voltar a ver, era um quase aceitar uma derrota.
E tu recusaste isso? Recusavas isso? Recusei nessa altura, recusei completamente isso e lá está, tive esses
3 anos de luto, digamos assim, em casa, raramente saía. Depois comecei a tentar
algumas coisas, voluntariades de um lado, coisas no outro, não sei quê. Entretanto, aparece um curso, aparece
que já existia, mas eu só soube daquele naquela altura, aparece um curso de massagem de recuperação numa associação
que a APDV, a Associação Promotora de Emprego de Deficientes Visuais. Hum. Hum. E pá, eu, o meu objetivo não
era ser massagista, o meu objetivo naquele momento era recomeçar com alguma coisa. E aquilo que eu pensei foi: “OK,
vou tentar. Se eu gostar disto, fiquei, fico. Se não gostar, saio e vou à procura de outra
coisa que gosta.” E que tal? E até hoje já lá vão 20 anos, porque depois comecei estar massagem de
recuperação. Gostei do curso, gostei da formação, gostei de fiz ali amigos para a vida. fiz ali, fiz ali um amigo que
ficou para a vida mesmo. Eh, e
depois, entretanto, começo a estagiar no na escola, no sítio onde ainda hoje trabalho. Eh, comecei a estagiar na
altura numa escola de dança, lá está, escola superior de dança que convidaram para para para lá ficar e ainda hoje lá
estou. Hum. E depois, entretanto, comecei, como comecei a gostar muito do meio, comecei a gostar muito da área de
recuperação e comecei a estudar outras outras coisas. Estudei oopatia, estudei chatso, estudei, pronto, fui, fui
abrangendo, andei ali numa numa numa numa maluquice de sei lá, se anos
seguidos sem parar a aprender coisas de segunda a domingo entre curso e estágio, cheguei a fazer três cursos ao
mesmo tempo. Cheguei a estar a fazer três cursos ao mesmo tempo a e a trabalhar ao mesmo tempo em dois sítios.
Portanto, eu passei daquele miúo completamente inativo, que estava em
casa sem fazer boi, que é mesmo isto, para uma pessoa que estava ativa de
segunda a sexta em cinco coisas completamente em três cursos e em dois trabalhos, sempre a acelerar, sempre a fazer
coisas, sempre a recuperar o tempo. Olha, tu eu eu li, tu já escreveste um
par de livros, um deles está aqui comigo, que é Depois da curva eh perder
a visão tem sido assim. Este é o teu o teu livro e e faz espetáculos também de
standup comedia. De resto, estás a preparar o teu espetáculo? Quando é que vamos poder ver?
Próximo, a próxima data eu estou à espera de mais confirmações, mas a próxima data já tá confirmada, é dia 4 de outubro no Lebull Comedy Room, que é
a sala de espetáculos do Lisboa Comedy Comedy Club, que que é onde eu vou
com alguma frequência ao Comedy Club. Eh, mas pronto, nesta sala é a primeira vez que vou atuar na Lebull. Hum. Para
ter dia 4, eh, às 21 horas, às às 9 da noite, um sábado. Eu não quero estragar, obviamente, a
surpresa, mas de que é que tu vais falar? De que é que tu falas? Este solo, este é o meu segundo solo de
standup. Hum, eu neste o primeiro, o choque frontal era um tutorial sobre o
que fazer e o que não fazer com pessoas cegas. Hum, este é um bocadinho a minha
vida desde que perdi a visão até agora. E este, eu escolhi este título
precisamente por causa disto, porque a questão do à vida depois da cegueira, porque lá está, porque as coisas não têm
que acabar. Hum, e eu percebo que existe essa vontade. Eh, e de vez em quando
surgemme choques disso. Por exemplo, há coisa de umas três, quatro semanas,
encontro apanho um, chamo um TVDE, o senhor percebeu que eu não, que eu não
vejo, até porque manda-lhe uma mensagem a dizer que não via, que estava no sítio tal para nos orientarmos os dois. E o
senhor quase de forma imediata começa-me a fazer perguntas. Ah, nasceu cego, perdeu a visão, pronto, na boa. Pediu-me
desculpa se eu não me importava. Tudo bem, tranquilo. Ao fim daquilo tudo, o senhor diz-me isto. Olha, eu peço-lhe
imensa desculpa estar a fazer estas perguntas todas, mas h queria saber mais
coisas sobre aquilo que passou, sobre si, porque tive uma tia que perdeu a visão aos 40 e poucos anos, não aguentou
e três meses depois suicidou-se. Pá, e eu conheço mais casos. Eu sou, eu saí de mais casas, assim, o caso da
pessoa mais jovem que eu conheço, que que pronto, que decidiu a mesma coisa, tinha era uma rapariga com 25, 26 anos e
isto acontece e eu percebo perfeitamente. Eu nunca tentei nada, mas passou-te pela cabeça. Passou. Passou porque não fazia sentido
naqueles primeiros tempos. naqueles primeiros tempos não fazia sentido. Hum.
E lá está, o os meus pais e os meus amigos mais próximos
é que foram o suporte total, não é? Porque naquele momento nada fazia sentido. Naquele momento
não não pronto, quer dizer, ainda por cimava multimédia, portanto computadores, era a tua a tua arte. Portanto, era aquilo que eu
queria, era computadores e vídeo e pronto, que e de repente eh, apaga a
luz, não é? E na altura eu não tinha a mínima noção de coisas como, por
exemplo, leitores de ecrã, não é, que pronto, são softwares e aplicações que trabalham são instalados nos
computadores e nos telemóveis que leem tudo o que lá está. Portanto, para mim nós trocamos mensagens e tu lês as minhas mensagens e redes sociais e mais
não sei quê, pronto, e tudo tudo certo. Mas eu na altura não fazia ideia que isso existia, quer dizer, nunca tinha convivido com isso. Eu nunca tinha
convivido com cegos. Eu foi um choque para mim quando fui para a PDV, porque nunca tinha convivido com cegos na vida
e de repente estou num viveiro de cegos. Estou assim numa espécie de de de viver de cegos eupes, não é?
E recusaste isso. Eu lembro-me que a tua relação, por exemplo, com a bengala e com a bengala era péssima. Inicialmente
eu eu tinha vergonha, eu tinha vergonha de usar a bengala porque eu tinha sempre a sensação de que estava
para onde fosse, estava sempre alguém a olhar para mim. Eu fazia de conta que eu cheguei a fazer de conta que via, OK? ou
ou pronto a tentar disfarçar que não via ou que não vejo. A bengala
foi foi uma luta porque não era só a questão da confiança do ir sozinho para
a rua, mas era principalmente o ser visto com aquele objeto, ser visto com
aquele pau, basicamente. Hum. E eu comecei a fazer isso sozinho.
Eu ia trabalhar, hum, ficava, ia até uma determinada zona da minha rua sem
bengá-la, porque conheço aquela rua perfeitamente e ia na boa. E ficava num determinado ponto à espera de uma colega
minha. Hum. Mas no dia que que que pá que que me
ftei completamente tinha porque eu andava sempre com uma bengala na mochila dobrada, eh comecei a
usar a bengala sem avisar ninguém, comecei a sair de casa sozinho, a ir dar voltinhas, a ir trabalhar sem avisar
ninguém. Pá, e o meu pensamento foi, e pá, que se lixo, se me perder, perdi-me
de alguma forma a ir voltar para casa ou e pá, qualquer coisa. Mas comecei a
fazer isso sem avisar ninguém, nem os meus pais, nem amigos, nem colegas. Eu lembro-me que os meus colegas, os meus
primeiros colegas que me viram a a chegar à escola sozinho com Bengala,
ficaram em choque a olhar para mim. Houve dois ou três que ficaram a olhar eh meio meio em choque eh olhar para
mim. Os meus pais reagiram na boa. Foi uma coisa super natural. Foi uma coisa
de já foste. OK, boa. Excelente. Olha como como é que é esse processo de aprendizagem, essa essa
curva de aprendizagem da questão da utilização da bingala. Sim. De a partir do momento em que tu deixas de ver como é que é a curva
depois de aprendizagem, o que é que o que é que se precisa de aprender? É tudo basicamente. É ler o ambiente, é
ler, é leres, é leres a ti próprio, é leres o ambiente. Porque assim, existe aquela ideia de que, ah, perdendo a
visão, os outros sentidos ficam logo mais desenvolvidos. Não é assim. Eu não, eu não concordo com isso. Acredito que
ficam mais apurados com o tempo, OK? Mas acima de tudo, o que eu acho é que, eh,
nós conscientemente, o nosso cérebro fica mais atento à informação dos outros sentidos. Informação essa que já lá
está. Só que a visão, no caso da visão, a visão é é o sentido mais eh ditador,
digamos assim, que temos. É o que é o que ocupa mais espaço, é o que rouba mais e dimensão a todos os outros. Ainda
por cima vivemos num mundo extremamente visual, não é? Em que tudo é feito para agradar à vista. Portanto, de repente,
quando isso desaparece, o que acontece é que os outros sentidos começam a estar mais atentos, digamos assim. Nós
começamos a estar mais atentos e a reconhecer coisas através dos outros sentidos. E quando digo coisas é, sei
lá, eu conheço pessoas pelo andar, pelos passos, mas toda a gente faz isto. Toda a gente veja ou não,
pelos passos, como pelo pelo pelo pelo andar, pela forma do pé bater no chão. Sim. pela forma do é assim e
pessoas que conheço e pessoas que não conheço. Por exemplo, eu às vezes falo de linguagem corporal porque dou dou
workshops de de de consciência espacial e consciência corporal. Hum, isso foi um
bocadinho para rasto da malta da dança e do teatro. Hum. O que é que tu ensinas? Eh, é isto, é vendar os olhos e
trabalhar a consciência corporal e espacial, fazer exercícios. Estamos uma, duas, 3 horas, já aconteceu três dias
seguidos. Houve uma jornalista há uns anos que quis fazer um trabalho comigo sobre isso. Viveu em minha casa durante
três dias. Andou três dias de olhos vendados. Hum. Como é que foi a experiência?
E pá, era melhor perguntar-lhe a ela. Eh, eu inicialmente gozei com ela a fazê-la, enganei, enganá-la aí dentro de
casa, ela a ir para um lado, eu ir para o outro. Ah, tu és maldoso. Portanto, tu decidiste fazer um desafio. Isso para
ver o que é que e a rapariga que estava com ela, a câmara que estava com ela, porque andava sempre a ser a ser filmada, depois elinhava nas cenas e
ficava a filmá-la de longe. Deixa ir. Hum. Mas mas é é um bocadinho isso, é
trabalhar essa consciência porque na verdade essa consciência e espacial, corporal, essa capacidade não é por se
ser cego que que se tem nisso. Toda a gente tem. Só que a visão ocupa tanto espaço que rouba essa consciência.
Mas nós não temos, não aprendemos muito. Lá está, essa noção de tu agora estavas a falar, eu estava a ouvir-te e estava a
pensar, nós estamos aqui os dois sentados num estúdio, estão estão aqui umas folhas de papel, está aqui uma
caneca, está aqui, estão aqui as minhas mãos, est mes redonda e portanto todas essas todas essas pequenas pequenos
traços de informação, não é uma informação que nós ínhamos como consciente, como como o nosso para o bem
e para o mal. Quer dizer, tá incorporado, está aqui. Eh, não sabemos se o espaço nos está a fazer sentir bem.
Está, parece que sim. A temperatura é boa. Eh, h, eh, e essa consciência, o
que é que nós fazemos com a com a consciência do corpo ou com a ausência da consciência do corpo? Eu eu tudo, por exemplo, eh posso estar
completamente enganado, mas h tantas a minha cabeça, não sei se sou eu, mas acho que não. Eu conheço outros cos
também são assim, é quase um, uma máquina de calcular para algumas coisas.
Por exemplo, tendo em conta a distância e o tamanho da da mesa que eu já percebi mais ou
menos qual é por ter chegado aqui, ter vindo diretamente aqui este canto, mas pelo perímetro da zona onde estou,
consigo perceber mais ou menos o tamanho da mesa. Pá, eu calculo que à volta da mesa, se não estão, podem estar
tranquilamente cinco a seis mesas cinco a seis cadeiras. É verdade. Podemos contá-los. Olha os microfones sempre 1 2 3 4 5 e um
microfone ali no topo para sexta. E isso não é um ato, isso não é claro um ato de adivinhação. Eu não te disse que
é uma questão de cálculo. É uma questão de é uma questão lá tá essa consciência. É a tua relação com o espaço. Sim, sim. Hum. Depois também houve uma
coisa que me ajudou muito e que eu aconselho sempre a toda a gente, veja, não veja, seja careca, seja cabeludo.
Pá, artes marciais são das melhores coisas que que que nos trazem que nos
dão ferramentas para isso. Eu fazço o quê? Eu fiz, eu quando falo em artes marciais, falo em artes marciais, não, atenção, nada contra quem
faz, mas com que fun. Sim, mas não, eu ia entrar na vertente clássica ou na vertente desportiva, que são bastante diferentes.
Então, conta-me. A desportiva é o quê? É desporto, é bater para ganhar pontos. É competição.
Pronto, é competição, que é uma coisa que eu, pronto, fui, fui convidado, recusei. A clássica trabalha-te muito
mais de dentro para fora. Meditação, a tal consciência, ler o espaço, eh, tudo.
Eh, por isso é que eu, por exemplo, eu tive dois mestres que com frequência põem os alunos a treinar de olhos fechados.
Aumentar essa consciência. Sim. Olha, no teu espetáculo anterior, tu tinhas feito essa tal lista de o que
fazer e o que não fazer com os cegos. Sim. Podemos debulhar essa lista? Sim. À vontade.
O que é o que é que não o que é que não podemos fazer? Porque eh não é não poder. É é é é parvo. Algumas
delas são parvas. Por exemplo, eu ainda ontem falei, eu ainda ontem falei com uma pessoa, hum, que estávamos a falar
precisamente sobre isto e há uma coisa que, eh, é um bocadinho o síndrome do
português a falar com o estrangeiro e não fala línguas, que é falar mais alto. E com os cegos acontece a mesma coisa.
Pessoas que vão falar com o cego põem-se só os gritos, ok? Isto acontece com muita frequência. Vou falar com o cego.
Pá, este gajo como não vê, deixa-me falar alto. Pode ser que ele que ele perceba para compensar. Sim, acontece muito isso
e tu tens que dizer: “Olhe, eu não tenho problema nenhum de Já já, já me aconteceu. Olha, eu eu eu não vejo, mas por enquanto ainda ouço bem.
Se continuar a falar assim, se calhar, pronto, não vou começar a ouvir mal também, mas acontece muito isto. Eh, o
sei lá, o ajudar, o querer pessoas que querem ajudar obrigam à ajuda, agarram,
puxam, empurram. O que se deve fazer nessas situações? Se alguém quiser ajudar um cego, por exemplo, é ir lá
perguntar, olha, precisa de ajuda? E se a pessoa disser que sim, perguntar: “OK, como é que quer que eu ajude? Quer que
querme dar o braço? Quero pôr a mão no meu ombro, quer sei lá qualquer coisa.” Mas é é perguntar simplesmente. E há
pessoas que simplesmente agarram e empurram, fazem do cego assim uma espécie de carrinho de mão com pernas.
Eh, e empurram e Mas eu não queria atravessar a estrada. Vamos embora. Mas é que eu quero ajudá-lo a atravessar a estrada. Eu eu
ontem falei quando estávamos a falar disto, falei de um exemplo de uma rapariga que conheço que é cega de
nascença. E isto aconteceu-lhe, saiu, pá, de um autocarro ou de qualquer
coisa assim, já não me lembro, e ia atravessar uma rua e de repente ela
percebeu que era um homem muito grande. OK. Há um fulano, há um senhor que pega nela
ao colo, não disse uma palavra, pega nela ao colo. OK. tipo bebé, tipo
princesa, atravessa a rua, chega ao outro passeio e põe no passeio e vai-se embora. Não
disse uma única palavra, pá, ao menos me fizerem isto, que me
convidem para jantar, faz favor, porque e pá, um copo, um cafonzinho,
qualquer coisa, mas só assim é muito bruto, não gosto, é muito frio. Mas este tipo de coisas, forçar ajudas e pá, não,
não vale a pena. Perguntem se a pessoa quiser, quer, se não quer, não quer. Ok. Eu, por exemplo, eu já houve uma senhora
uma vez que discutiu comigo na rua porque me perguntou três ou quatro vezes se eu queria ajuda. E eu disse-lhe:
“Não, obrigado, eu estou estou aqui à espera de alguém. Estava mesmo à espera de alguém.” E ela insistiu:
“Não, a questão não foi só existir. A senhora virou-se, virou-me costas e foi a mandar vir aqui é mal educado porque
eu não aceitei a ajuda, porque eu disse que não precisava da ajuda.” Hã, já houve outras pessoas que insistiram e
que tiveram mesmo que me levar. Houve uma senhora que, lembro-me perfeitamente a senhora que queria ser genuína, a
senhora estava genuinamente a ser boa pessoa e e querida e disponível. E eu às
tantas aceitei a ajuda da senhora para fazer a vontade à senhora para ela ficar feliz. Sim. Depois a senhora foi-se embora e eu voltei para o sítio onde estava. HH a
senhora queria queria-me ajudar a ir para algum lado, uma senhora assim já de seus 80s, 80, 90. Hum. Mas a senhora,
essa senhora queria efetivamente te ajudar e eu, ok, pronto, quero ir para ali. E foi atravessar a rua. E a senhora
foi-se embora. Eu fiquei ali um bocadinho e depois voltei para o sítio onde estava, porque eu tinha combinado com uma pessoa do outro lado. Mas esta
senhora, pronto, lá está, foi simpática, foi querida. A outra não, a outra foi a mandar vir. É que é mal educado. Pronto.
E mas é isto, é este tipo de coisas. Hum. Olha, a maioria de nós eh lida mal
com a diferença. Depois entramos na hoje é politicamente correto nós dizermos que não, que somos inclusivos, que acolhemos
as pessoas. A palavra faz muita como irrita-te? Não me irrita. faz. Há duas palavras que que me fazem muita comção, que é a
questão da inclusão, porque vamos ser sinceros, enquanto se falar de inclusão,
significa que o que está à frente é a exclusão. Enquanto se falar de inclusão, significa
que existe exclusão. É o outro lado da moeda. É o outro lado da moeda. Enquanto existir um, existe o outro.
Qual é a questão aqui? E aqui vem a outra palavra que me me tira do sério, que é a questão da tolerância,
que aplica-se não só a a qualquer tipo de limitação, como a questão da orientação sexual ou questão de género,
tudo isso que é tolerância. E volta e meio há pessoas que ah, mas Portugal e a sociedade portuguesa já estão muito mais
tolerantes. E o que eu digo sempre é isto, se estamos tolerantes, está tudo mal, porque não devíamos ser tolerantes,
deveríamos aceitar. São coisas diferentes. A tolerância eu sinto-a sempre como uma coisa muito volátil, que
agora estar a quem nada não está. É um bocadinho, eu tolero que tu existas, mas não chatei muito.
Eu sinto um bocadinho isto assim, porque é uma tolerância muito impaciente. É
aquela tolerância que dá sempre espaço a que haja eh um um
sorrisinho, um sinal de cabeça do género. Já viste ali um quando passa um
cego, por exemplo, com uma bengala ou com um cão guia, há sempre ou um silêncio ou um murmurinho,
pessoas, pá, tudo. E a partir do momento em que
não existe aceitação, que não existe normalização, aceitar as pessoas como elas são, seja o
que for que tá ali, olha, é cego, é careca, é estúpido, tudo bem, não interessa, tá ali, deixa-o ir. Mas há
sempre um burborinho, há sempre um sorrisinho, há sempre um gozar com
alguma coisa ou um lamentar alguma coisa. Coitadinho do ceguinho. Olha lá vai ele com a bengalinha. Não segar
muito isto, a questão do diminuitivo para tudo. É ceguinho, coitadinho. A bengalinha, pronto, é um paternalismo.
É, é, é. E pá, e isso eu acho que tá muito relacionado com essa
falta de aceitação, que admite perfeitamente que na maioria das vezes não é por maldade, não tem nada a ver
com isso, é simplesmente por uma falta de hábito em lidar com a realidade, em lidar com aquilo que existe. Porque a
verdade é que durante muito tempo, isso começou a mudar há alguns anos e ainda bem,
por exemplo, nas escolas, crianças que tivessem qualquer tipo de limitação ficavam de um lado e as outras crianças,
as ditas normais, ficavam do outro. Eh, isto aconteceu durante muito tempo. Há uma espécia, havia uma espécie de
apartide, sim, entre os normais e os não normais, seja lá o que isso for. Agora, sim. Agora, o que é que o que é
que, por exemplo, me chateou, entre aspas, numa noutra situação
é saber, por exemplo, de cegos e vamos pensar assim, ah, mas se calhar são pessoas mais velhas, não? Algumas
delas têm a minha idade mais ou menos, que defendem que cegos devem ser ensinados de um lado e miúdos que vem
devem ser ensinados do outro. Ou seja, cegos que defendem esse separatismo,
digamos assim, por causa da especificidade, das coisas que tem que aprender. Eh, talvez consegues compreender qual é o argumento
que está? É, pá, eu encontro vários, encontro vários. Esse é um deles, que acho que não faz sentido na maioria das coisas. E depois
há dois outros que é hostumo dizer muito que há cegos que não querem deixar de ser ceguinhos, OK? Não querem deixar de
ter aquele estatuto de coitadinho e de especial, OK? Porque ser são sempre especiais, coitadinhos, não vem e
superam, são sempre especiais. E quem tem Cadras Rodas, não sei quê, são sempre pessoas especiais,
tem mestrado e não sei quê e tem uma especialidade quem não ver. Pronto. Hum.
Ou então há uma e e há muitos cegos a a a agir
desta maneira, que é o exatamente o oposto, que é eu sou cego e consigo fazer isto, sou muito
bom. É o contrário, exatamente o oposto. E eu acho que é um bocadinho este são
estas três razões, se calhar uns mais, outros menos, que fazem com que muitos
ainda queiram essa essa separação. Não são todos, atenção, felizmente acho que a maioria não quer, pelo menos a maioria
daqueles que eu conheço. Hum, mas conheço alguns que querem essa separação, que acham que deve ser assim,
que deve existir. Cerres de um lado, normavisuais do outro. Eh, que é uma
palavra linda, norma visual, é excelente. Uma palavra composta estranhíssima, brutal. Olha, o o hoje na sociedade moderna que
nós temos temos cotas para várias coisas e as questão das das cotas e para para para emprego, para conseguir um emprego,
essa é outra. Faz sentido que existam cotas? faz sentido a partir do momento em que não existe bom senso.
Porque essa essa história de que teve que ser criada uma lei e a maior parte das pessoas não sabe disto, teve que ser
criada uma lei para pessoas com deficiência poderem ter o direito de trabalhar porque senão não trabalhariam,
porque senão muitas empresas e este esta lei é tão envolve público e privado, empresas públicas e ou instituições
públicas e privadas e por cada X, lá está a tal questão das cotas, que tu estavas a falar, por cada X,
funcionários têm que abrir uma percentagem para de vagas para pessoas com deficiência. A questão aqui é que
durante muito tempo e eu senti isso na pele, OK? Foram-me recusados estágios, foi-me recusado de trabalho por ser
cego. OK. Dou-te um exemplo muito simples. Estamos numa estamos estamos numa rádio.
Foi-me recusado um casting para animador de rádio por não ver.
Não vou dizer qual foi a rádio, mas sei qual, mas lembram-me perfeitamente qual foi. Eh, foi-me recusada uma entrada num
curso de rádio por não ver, que é um sítio perfeito para qualquer cegue poder
trabalhar. Pois, mas ah, como é que você vai mexer no computador? Eu dizia leitores da ecrã. Ah, mas isso implica ter o
trabalho de mudar ali qualquer coisa. É, é este o problema. E a maior parte
das pessoas acha que, por exemplo, na questão da cegueira tem que se mudar meio mundo, não tem que se mudar quase nada, não tem que se mudar praticamente
nada. Hum, mas eu eu senti isto na pele, não foi muitas vezes, foram vezes
suficientes para para para me sentir mal, para me sentir recusado, mas conheço pessoas que, infelizmente,
sofreram bem mais do que eu. Isso. Hum. Mas lá está, continuamos ainda nessa
nessa questão que teve que ser criada uma lei que obriga as empresas a ter vagas para
pessoas com deficiência porque senão não tinham, porque lá está o bom senso de ok, esta pessoa não vê ou esta pessoa tá
numa cadeira de rodas ou esta pessoa até tem uma paralisia cerebral ou qualquer outra limitação, mas consegue fazer isto
se calhar melhor do que este tipo tá aqui que é perfeito, entre aspas. Hum,
não há esse pensamento, há há esse bloqueio imediatamente. Mas tu és um bom exemplo de a tua
chegada ao mercado de trabalho e a tua entrada. Não sei se se foi ao abrigo de alguma
cota inicial, mas na realidade tu hoje em dia há uma há uma tens uma competência, é uma competência que é
reconhecida e obviamente trabalhas como qualquer outra das pessoas que quiseres o teu tipo de função.
Sim, sim. Sim. Mas, por exemplo, quando eu comecei a estudar a osteopatia, no curso de massagem, não, porque até
era num numa numa instituição só para cegos e embolí-pos, não é? Pronto, portanto ali, pronto, era era só aquela
era só aquela raça, digamos assim. Mas quando fui estudar osteopatia, era o único aluno cego no curso.
E também ouvias bichara? Eh, soube, nunca tiveram coragem de me dizer, mas soube de pessoas que diziam
que eu não devia trabalhar no meio por não ver. Isto chegou-me apenas porque Sim.
Sim, mas lá está, era o que eu estava a dizer, como massagista, recusaram-me
trabalho num sítio, recusaram-me estágio noutro sítio pelo facto de não ver.
E e uma das pessoas foi muito direta. Essa essa essa história é gira porque eu
tive uma reunião com essa pessoa e poucas semanas depois comecei o curso de osteopatia. Ironia das ironias, na minha
turma do curso de osteopatia estava uma pessoa que trabalhava nesse sítio para onde eu tentei ir estagiar.
E conversa puxa conversa eu disse-lhe: “Olha, tive lá há umas semanas que falei com esta pessoa para ir fazer estágio”.
E e ele pergunta-me também não ficaste porquê? E eu disse, pá, que ele me disse foi que não tinha vagas, que estava
cheio coisa e não sei o quê. E pá, e ele ficou com uma expressão de não havia
vagas. Exato. Tá bem. Foste enganado. Ah, não. E ele só me diz: “Olha, faz-me uma coisa. Próxima
aula traz-me o teu currículo em papel. Hum, vou tentar fazer uma cena.” E eu, OK. Na aula seguinte, levei-lhe aquilo,
dei-lhe aquilo. Hum. E uns dias depois, na aula seguinte, eu
lhe ter entregue o o CV, ele apanha-me à parte e diz-me: “Olha,
hum, pá, eu vou ser muito franco contigo”. A pessoa em questão não
disse-te aquilo porque literalmente não te quer lá. E disse uma frase: “Eu não sego, não quero um cego aqui a tratar as
pessoas”. Portanto, hã, isto não foi assim há
tanto tempo. Isto foi, portanto, foi no início do meu curso de osteopatia. Portanto, isto terá sido para aí há 15
anos, 16. Sentes que que as coisas estão a mudar um bocadinho ou ou continuamos
cínicos? Estão a mudar? estão a mudar, felizmente, mas existe ainda muito cinismo. E existe uma coisa que é o que
é o que me faz ter aquela comção com a palavra inclusão, que é empresas,
pessoas que usam o termo inclusão para ficar bem na fotografia,
porque é politicamente correto. Ora bem, e porque fica muito bem. Estão a ver? Nós nós somos tão bondosos que até damos oportunidades a estas pessoas.
Não porque sintam que aquela pessoa é válida, não porque sintam porque que é importante incluir alguém
verdadeiramente apenas porque quase como um porta-chaves, como um fica, é um galardão, fica bem na
fotografia. Atenção, é assim, estamos melhor, eu acredito, eu acho que estamos efetivamente melhor. Nota-se, eu noto eh
muitas melhorias e muitas diferenças, noto muitas mudanças nesse aspecto, mas ainda existe muito o outro lado que é o
e pá, eu por mim não punha aqui esta pessoa, mas aos olhos dos outros isto é
um isto é um grande retrato. Isto é um grande retrato. Portanto, é fazer o bem
para ficar bem, não para para promover o que que nós possamos promoverem eles
próprios. Exatamente. É para si próprio. Eh, e é tu, tu usas a linguagem e o humor como uma ferramenta que estilhasse
ao politicamente eh correto. Tento, tento, porque não gosto do politicamente correto. Porque
bem, a tua lista de ódios é maravilhosa. Portanto, pá, não são ódios, não são ódios, pá, de irritações,
mas são são irritaçõezinas, como tolerância, qual nas palavras, tolerância, inclusão. Hum. E pá, e o
politicamente correto, porque o o politicamente correto muitas das vezes é altamente
hum castrador, não é? E é o politicamente correto muit das vezes não
te deixa dizer aquilo que tu estás a pensar e que na verdade é aquilo que tem que ser dito, só que parece mal naquele
momento. Hum, portanto, é e pá, mas mas estas três coisas, por exemplo, eu acho que estão
todas muito relacionadas umas com as outras, não é? Eh, porque é politicamente correto tolerar e incluir.
Portanto, elas estão eh na moda, estão na moda, são coisas que estão na moda. E esta questão da inclusão, pá,
somos todos inclusivos. Agora, agora é tudo muito inclusivo. Só que a palavra inclusão eu acho que já tá tão gasta,
hã, que que já lá tá já. E eu não sou a única pessoa a pensar assim. Eu conheço outras pessoas que uns são cegos, outros
não, outros vem perfeitamente e e que também já estão um bocadinho chateados com a palavra inclusão e até tentam já
não usar essa palavra nas coisas deles e fazem coisas inclusivas, verdadeiramente inclusivas e já quase que dão a volta ao
dicionário para tentar encontrar termos que não us sinónimos para a palavra
inclusão, porque já está a cair naquele ponto de é pá decesso Porque para chamar
já é tudo inclusivo. Olha, como é que nós combatemos efetivamente a questão do dos
estereótipos e da discriminação? Aceitando as pessoas. Não não não temos que olhar para as pessoas
ou ou por outra, não temos que olhar para as características das pessoas, temos que olhar para as pessoas. Ponto
final, seja o que for. São pessoas, somos pessoas. Eh, eu percebo que cada
vez mais haja mais que não parecem seres humanos. Pronto, são robôs.
Não sei se chegam a tanto. Lendas, principalmente político. Acho que a coisa cada vez está menos
humana, não é? Pronto, mas somos pessoas. Eu acho que não podemos estar a olhar eh para características das
pessoas e moldar o comportamento e por causa disso ou aproveitar isso
para ganhar alguma coisa ou para fazer a outra pessoa perder ou sentir que
ganhou. Porque existem aqui dois tipos de discriminação. Por exemplo, existe aquela discriminação
negativa que é a do esta pessoa é uma incapaz porque não vê ou aquela que é
extremamente positiva, que é este gajo não vê e faz isto, é um superherói. Não é superherói nenhum. Ok, se for cego e
piloto de aviões e pá, caraças, aí sim. Aí aí há ali um poder sobrenatural. OK.
Eu aí admito que um cego que me apareça aqui e que seja piloto ou de Fórmula 1
ou de ou piloto piloto de aviões ou o que for sendo cego e pá sim, é uma
capacidade do caraças. Isso é quer ser sobrehumano, não? Isso é, isso é ser sobre. Agora, a maioria das profissões, se as pessoas pensarem
bem, a maioria das profissões não requerem a visão. A maioria delas, a maioria das coisas,
por exemplo, que nós fazemos em casa, o cozinhar, o limpar, o, sei lá, o arrumar a roupa, o engomar, o não sei quê, a
visão não é precisa para isso. Na verdade, as pessoas fazem coisas, quem vê faz coisas todos os dias que não se
apercebe, mas não usa a visão. Dou-te um exemplo. Quem trabalha, quem escreve em computadores ou o que for há muitos anos
e tem muita experiência, não olhas para o teclado. Não olhas para o teclado, está simplesmente a escrever e e
está simplesmente a escrever aquele site. Depois há outras coisas, há detalhes. Por exemplo, tu estás na cama
à noite, eh, queres acender a luz da mesa de cabeceira, tu não andas às a palpad delas à procura dela. O
vais lá direto, vais lá direto. O teu corpo sabe o caminho. É a tal consciência e a tal memória corporal. Tu vais, tu percorres
a tua, tua, a tua casa toda, se for preciso, às escuras, sem acenderes uma luz, ainda pões o pé por cima do teu cão
porque sabes que ele dorme ali naquele canto. Eu sou desastrado, portanto voltei meia uma topada ali no pronto. Mas isso também me acontece. Eu
que dizia partindo do mesmo dedo, porque mandei três vezes com o mesmo dedo do pé na mesma esquina. Cantade tirar uma v
janela fora ou mandar cortar a esquina. Hum, sim. Eh, mas e pá, mas isso acontece sempre, tanto com sono, por
exemplo, e pá, pronto. Eh, mas lá está, hum, essas coisas não se é um superherói
porque não se vê e porque se consegue fazer coisas. Eu eu, por exemplo, aconteceu uma vez estar a dar uma
palestra e quando estava a sair, portanto, estavam pessoas, umas vinham ter comigo, outras a conversaram entre
elas e tal e e essa palestra tinha a ver precisamente com o com a superação, com a questão da superação. E pá, e havia
estavam duas ou três pessoas a conversar e eu lembro-me que uma das pessoas diz a frase: “E pá, não vê esteve ali a falar,
falar, falar, ok, falar. Tens que levar uma etiqueta que é eu não vejo, mas
osso. Eu não vejo, mas falo, eu não vejo, mas movo. Sim. Eu enrolem etiquetas. E pá, mas mas lá está, há muito isto, eh, há muito
isto, eh, e há muita coisa que que as pessoas acham que é obrigatório
ver para fazer aquilo, não é? Olha, o que é que te faz rir?
E pá, o que é que me faz rir? Olha, pessoas que não se levem demasiado a
sério, que se riem de si próprias, se riem de si próprias, que não têm problema de si próprias. Olha, eu dou-te
um exemplo. Quando estava a escrever o choque frontal, o meu primeiro, o meu primeiro solo, uma grande amiga minha,
cega também, que perdeu a visão, por exemplo, essa é outra. É cega, perdeu a visão com 15 anos e só depois de perder
a visão é que começou a dançar. Hoje é bailerina profissional, tem 36 anos, é
bailarina profissional e é cega. e mãe de dois filhos e faz produção. OK.
E tem uma vida. E tem uma vida. Mas ela chegava-me a acontecer. Ela sabia que eu estava a escrever o choque e acontecia-me do
género de telefonar-me e dizer-me: “Pá, acabou de me acontecer isto”. Escreve.
Portanto, a dar-me material, a dar-me coisas dela. Eh, pá, acabou de me acontecer isto assim, assim. Mete isto
no texto, por favor. Como é que é o teu processo criativo? Eh, é pá, é meio doentiu. Às vezes eu
dou por mim a acordar a meio da noite ou estar quase a adormecer e lembrar-me de coisas e mandar mensagens para mim
próprio, para não me esquecer delas. Primeiro, primeiro usei a estratégia de gravar áudios e depois percebia que ao
outro dia ouvia aquilo e estava com uma padradação tão grande que não percebia o que é que estava a dizer. E tu começaste a escrever? Então comecei a escrever, a mandar
mensagens a mim próprio e mesmo assim às vezes não corre bem porque troco palavras e troco coisas de sítio e não sei quê. Pronto. Hum. Mas o meu processo
criativo é, sei lá, é escrevendo conforme as coisas me vão me vão surgindo. Ah, e depois de vez em quando
tenho que me sentar para organizar tudo. Hum, pronto. E há sempre aquela coisa da
pesquisa e de andar sempre à procura de outras coisas e de estímulos. E pá, e gosto muito de ver outros comediantes e
outras pessoas que que escrevem, hã, tanto portugueses como como estrangeiros. Hum. Hum. E pá, e há muita
coisa que, por exemplo, agora comecei a ver há pouco tempo, eu já o conhecia como ator, mas não sabia que ele fazia
que ele fazia standup, que pá, que aconselho toda a gente a seguir, eh, que
é o Brad Williams, que é não. E lá está, o que é que eu senti ali, olha, outro
parvo, eu levo a cegueira para cima do palco, ele leva o nanismo, OK? Ele leva
ao facto de ser a não para cima do palco, estilhaçar o o completamente ele. Pá, eu adoro adoro a
forma como ele, se calhar revejo-me ali muita coisa, mas ele ele rebenta completamente com a cena, tipo, sou a
não, ya, até chega até onde alguns nome de vocês não chegam e são maiores. Chega lá mais depressa. Hum. E pá, mas mas é
isto. Gosto deste tipo de coisas. humor, pá, gosto de humor ácido, gosto de humor
inteligente. Ah, eu sou daquela geração de Monte Python, Mel Brooks, e eu era,
pá, eu era puto quando começou, quando surgiu o Seinfeld em Portugal,
que dava às 2 da manhã, dava a 1 e tal, 2 da manhã, a meio da semana e eu ao
outro dia ia para a escola cedíssimo, cheio de zona. Não queria saber. Nos dias que dava Sef era sagrado. Eu tinha
que ficar a ver aquilo. Era ex, era X Files, era o Seinfeld, aquelas coisinhas, pá, que nós gostávamos todos
daquela altura. Hum, davam às 1, 2, 3 da manhã, não interessa, tenho que ver. Ao
outro dia ia para a escola cabeçadas na atmosfera, mas pá, mas aquilo tinha que ser visto. Hum. Portanto, eu sou eu sou
um bocadinho dessa geração que é aquele humor parv, aliás, eu comecei a fazer standup muito por causa de um amigo meu
que é guionista e e produtor e realizador, na verdade também já é ator. Hum, que há
um dia qualquer que estávamos no carro dele e não sei para onde e eu fiz uma
brincadeira qualquer, disse qualquer coisa, já não me lembro do quê, relacionado com Cira,
pá, e ele só me dizia, pá, ó puto, tu tens um humor estúpido, dás-te bem com
isso, pega nisso para fazer alguma coisa. Aproveita. Olha, estamos a fechar. Eh,
quero escrever dois bilhetes. Quero que escrevas dois bilhetes. Há o teu eu de 18 anos.
ao tempo de hoje e há o teu eu eu, quando tiveres a idade de Matusalém já
muito velhinho, com uma com uma vida cheia. Olha, o meu eu de 18 anos, eu costumo dizer que se me encontrasse
comigo próprio nessa altura ia ser bully de mim mesmo, no sentido de abre os olhos, deixa de ser parvo e aproveita
a vida, porque isto não dura muito tempo. E ao meu eu de de de de mais velhinho,
se as coisas continuarem como têm estar a ser, o meu recado para ele é: “Olha,
conseguiste porque há houve uma coisa que me ficou,
houve uma mensagem que me ficou e que eu escrevi que tá nesse livro no Depois da Curva. Eh, e foi das coisas mais, acho
que foi as coisas mais fortes que aprendi comigo mesmo. Independentemente
de tudo o que nós digamos, façamos, pensemos, a vida não para. Nós, se nos
sentarmos, se estagnarmos, se ficarmos quietos à espera que as coisas apareçam, as coisas passam por nós e a maioria das
vezes não voltam, não voltam a passar a segunda vez. Portanto, faz-te ao caminho. Faz-te ao caminho e cria as tuas
próprias oportunidades. Há coisas que não dependem de nós, óbvio, mas há muita
coisa que nós podemos fazer. Há muitas oportunidades que podemos ser nós a criar. Portanto, é aproveitar aquelas
que passam por nós, que não dependem de nós, tentar aproveitá-las sempre, ter consciência, obviamente, e medir riscos
e tudo isso. Não ser neurótico, mas ter noção, né? pensar de forma séria e
perguntar às pessoas e aos amigos e a quem está no meio, não sei quê. Mas por
outro lado, as coisas que depende, que podem podemos ser nós a fazer e que é
muito mais do que aquilo que normalmente achamos e pá de fazermos, tentarmos, pedirmos ajuda, porque ninguém faz nada
sozinho. Eh, pedirmos ajuda a quem tiver vontade de nos ajudar, a quem souber, a
quem perceber, a quem quiser estudar connosco. Se não sabes como fazer não sei o quê, vai à procura e estuda e
tenta perceber como é que fazes. Se não tiveres dinheiro para fazer formação naquilo, OK, tenta fazer por Carol.
Houve muita coisa. Eu hoje trabalho em produção, eu tenho zero formação em produção. A minha formação em produção foi lidar nos bastidores com a malta do
teatro, da dança e da televisão. Esta foi a minha formação e foi um percurso fantástico. Ricardo, muito obrigado. Obrigado eu pelo
convite.