O que é uma grande história de saúde na televisão?
Este é o mote para falar de critérios editoriais, fator humano, tecnologia e esperança no futuro.
Onde falámos da importância da saúde, das notícias mais interessantes e das pessoas que sabem muito da sua área de saber, mas precisam de treino para explicar coisas complexas ao grande público.
O que é uma grande história?
O que é uma grande notícia?
Todos lemos nos jornais, ouvimos na rádio, vemos na televisão ou simplesmente acompanhamos nas redes sociais as notícias que fazem a chamada atualidade.
Cada meio de comunicação tem a sua forma editorial de escolher e contar as notícias.
Mas os critérios jornalísticos de base são sempre os mesmos.
Manda a atualidade. A importância dos factos para a audiência. A proximidade. A importância das personagens do dia. E outros fatores que são sempre parte da escolha.
Tem uma história emoção?
Tem interesse humano?
Tem boas imagens, bons sons ou fotografias que explicam tudo?
E mesmo que uma história tenha tudo isto, a notícia de cada jornalista concorre dentro da colmeia da redação com outras propostas de notícia, com outros temas, com outros feitios de editores e diretores.
Uma boa história pode pura simplesmente ficar no congelador se o governo caiu, se o Benfica for campeão, se houver uma tragédia súbita ou um notável morrer.
E, algumas vezes, o fútil e acessório, come espaço às notícias que mexem verdadeiramente com a nossa vida. Ou então sou eu a achar que as notícias que assumo como sérias são mais importantes do que aquelas que nos distraem, fazer rir ou invejar as vidas mais leves que as nossas.
Mesmo em temas importantes há grandes desequilíbrios nas coberturas noticiosas.
Por exemplo, em qualquer redação há vários jornalistas a fazer política. Outros tantos a fazer economia. E ao mesmo nível há também múltiplos jornalistas a fazer desporto. Ou deveria dizer, futebol.
O resultado é uma cobertura desproporcional destes temas em relação e outros também muito importantes: a educação, a saúde, o ambiente. Normalmente áreas sociais.
E há outro desequilibro: nas notícias há muito, muito, muito Lisboa. E pouco país. Algum Porto. Quase nada Vila Real, Bragança, Viseu ou Évora.
Ocasionalmente ouvimos as vozes da Madeira e dos Açores. Mas há demasiado centralismo.
Nos temas também é assim.
E no caso da saúde sobram uma dezena de jornalistas especialistas sérios a trabalhar um tema de grande importância para todos nós. E o tema saúde é claramente minoritário no menu das notícias do dia.
Mesmo em tempos de pandemia ouvimos mais política sobre a pandemia do que saúde, epidemiologia, doentes, médicos.
Embora a pandemia até foi um momento de aparente mudança de paradigma: à chuva dos tudólogos, que tudo comentam, de que tudo fingem sabem, juntou-se finalmente uma força de resistência pública e mediática de verdadeiros especialistas.
E foi fácil ver a diferença entre a água e o vinho.
Temas:
00:04:06 Vertente humana é essencial.
00:11:18 Simplificando histórias complexas
00:16:03 Ciência explicada com honestidade.
00:17:02 Partilha de conhecimento é essencial.
00:24:28 Comunicar durante a pandemia
00:29:28 Inovação no SNS
00:33:24 Flexibilidade e trabalho de equipa
00:39:32 Jornalismo foca no extraordinário.
00:46:37 Valorização da saúde é importante.
00:52:03 Importância do jornalismo crítico.
LER A TRANSCRIÇÃO DO EPISÓDIO00:00 Jorge Ora Vivam, bem-vindos ao Pergunta Simples, o vosso podcast sobre comunicação. Como funcionam as fábricas das notícias? Como escolhem os factos que merecem ser notícia ou jornalistas? Que critérios usam para incluir no telejornal o relato de factos ou a explicação de contextos? E na área da saúde? São os critérios os mesmos? Esta edição é sobre isso, sobre notícias da saúde, como se fazem notícias na área da saúde, sobre a maneira como se escolhem as notícias que são notícia, sobre as histórias que pintam a nossa atualidade. O que é uma grande história? O que é uma grande notícia? Todos lemos jornais, ouvimos rádio, vemos da televisão ou simplesmente acompanhamos nas redes sociais as notícias que fazem a chamada atualidade. Cada meio de comunicação tem uma forma editorial de escolher e contar as notícias, mas os critérios jornalísticos de base são sempre os mesmos. Manda à atualidade, a importância dos factos para a audiência, a proximidade, a importância das personagens do dia e outros fatores que são sempre parte da escolha. Tem a história em moção, tem entre-as humano, tem boas imagens, bons sons ou boas fotografias que explicam tudo. E mesmo que uma história tenha tudo isto, a notícia de cada jornalista concorre diariamente dentro da colmaia de redação, com outras propostas de notícia, com outros temas, com outros feitios de editores e diretores. Uma boa história pode, por isso, simplesmente ficar no congelador ou cair, se o governo deixar de estar em funções, se o Benfica for campeão, se houver uma tragédia súbita ou um lutável, morrer. E algumas vezes o fútil e acessório come espaço às notícias que mexem verdadeiramente com a nossa vida. Ou então sou eu a achar que as notícias que assumo como sérias são mais importantes do que aquelas que nos distraem, fazem rir ou invejar as vidas mais leves do que as nossas. Ou em temas importantes há grandes desequilíbrios nas coberturas noticiosas. Por exemplo, em qualquer redação há vários jornalistas a fazer política, outros tantos a fazer economia e ao mesmo nível há também múltiplos jornalistas a fazer desporto. Ou deveria dizer futebol. O resultado é uma cobertura desproporcional destes temas em relação a outros que também são muito importantes. A educação, a saúde, o ambiente, a segurança social, normalmente áreas sociais. E há um outro desequilíbrio. Nas notícias há muito, muito, muito Lisboa, pouco país. Há algum porto, quase nada, Vila Real, Bragança, Viseu, Évora e de vez em quando ouvimos as vozes da Madeira ou dos Açores. Mas há demasiado centralismo na produção das notícias. Nos temas também é assim. E no caso da saúde sobram uma dezena de jornalistas especialistas senhores a trabalhar um tema de grande importância para todos nós. O tema da saúde é claramente minoritário no menu das notícias do dia. Mesmo em tempos de pandemia, conseguimos ouvir mais política sobre a pandemia do que saúde, epidemiologia, doentes ou médicos. Embora a pandemia até tenha sido um momento de aparente mudança de paradigma. A chuva dos tudólogos, que tudo comentam nas televisões, de que tudo fingem saber, juntou-se finalmente uma força de resistência pública e mediática de verdadeiros especialistas. E foi fácil ver a diferença entre a água e o vinho. Esta semana encontrei-me com Paulo Rebelo, uma amiga de sempre, jornalista na RTP, com base no Porto, mas com um olhar sobre todo o universo da saúde, todo o universo nacional e internacional da saúde, em particular o nosso SNS, para saber dela como funciona a sua máquina mental de fazer notícias, como escolhe, como define, o que é que é uma boa história e notícia.
04:06 Paula Rebelo Há várias vertentes, mas para mim a que continua a ser uma grande história é a que tem indiscutivelmente uma vertente humana. Eu tenho dificuldade em ter uma grande história em mãos se não tiver uma vertente humana. Depois, na verdade, imagino um avanço científico. Eu lembro-me de há 20 anos, quando estava no privilégio de entrar no bloco operatório da professora Rui Vaz para a primeira cirurgia da estimulação cerebral profunda para o controlo das consequências do Parkinson e pensar que era um dos dias mais fluidos da minha vida e, no entanto, não era eu o paciente que estava a ser operada. Isso é uma grande história, percebes? Porque também já passaste por isso, deve ter imensos momentos destes. São alguns momentos que me marcam. Uma grande história é aquela que nós sabemos que vai fazer a diferença na vida das pessoas. E no fundo tu tens um sentimento quando estás a fazer a história? Tenho um, completamente. É mais forte quando tem esse crise humano, quando tu percebes que há uma mudança imediata. Não vais ter que fazer a gestão de expectativas, não estás a fazer a política de saúde, com todo o respeito, mas que tens que fazer uma gestão de expectativas, mas quando vejas a mudança concreta. E quando vejas essa mudança concreta na vida das pessoas, no acesso das pessoas,
05:30 Jorge na qualidade de vida das pessoas, não é só na sobrevivência das pessoas. Como é que foi essa história? Me lembram para as pessoas que não conhecem, em primeiro lugar,
05:40 Paula Rebelo como é que tu negociaste conseguir estar dentro de um bloco operatório? Há época, e estamos a falar efetivamente há 20 anos, efetivamente não era fácil, mas eu já tinha a sorte de ter alguns créditos de confiança em alguns especialistas, nomeadamente no Porto. Eles gostavam da maneira como eu comunicava a saúde, não era aquela coisa que antes existia de que só ias aos hospitais quando havia chateço, quando havia alguma coisa, uma crise, quando alguma coisa corria mal. E aí o mérito foi do professor Solari Alegre, aliás, se eu sou especialista em jornalismo e saúde, foi o nosso soldoso Solari Alegre.
06:19 Jorge Era presidente do Hospital de Santo António, e que foi possível negociar essa saída. Mas no caso do professor Livast, desculpa interromper-te, é São João, e vem mais tarde. E quando tu foste no São João, cirurgia, entras na cirurgia, imagino que tinhas passado pelas rotinas todas, desinfetar, colocar a máscara, colocar a…
06:43 Paula Rebelo Limpar o tripé, desinfetar o tripé, que muitas vezes as pessoas esquecem, se nós entramos com o material de reportagem, desinfetar o tripé e estar num cantinho, não podes tocar em nada dos panos verdes, porque é tudo esterilizado, esterilizado, mas estás ali. E há uma sensação de compromisso, ok? Nós temos aqui um avanço, e isto vai fazer uma mudança incrível na vida dos doentes. Claro que o professor já tinha treinado lá fora, e depois treinou, quase todos os especialistas que hoje em dia estão a fazer essa técnica, e a gente vê que já expandiu para as doenças do movimento, para a esquizofrenia, para algumas até para adições importantes. É um admirável mundo novo, mas estar lá no primeiro, perceber a qualidade de vida de uma pessoa que está completamente lúcida, mas completamente refém do seu corpo. Contramera, involuntária, eles não conseguem mexer, então sepam mexer-se, não é? Exatamente. E pessoas jovens, a idade ativa. Nós só vamos aflar na altura, o primeiro, nós só vamos aflar à volta de 50 anos, e eram pessoas que eram dependentes para tudo, para tudo, para apertar um botão, para lavar os dentes, para coçar um braço, porque não tens controle total.
08:00 Jorge Eu acho que isso foi das primeiras coisas que me fez dizer uau. E portanto, tu estás lá como testemunha. É isso. Uma testemunha profissional, mas uma testemunha profissional que tem uma obrigação, que é o que tu estás a ver é aquilo que tu vais contar. Como é que se conta uma história? Como é que se conta essa história? Ou outra, como é que se conta uma história?
08:22 Paula Rebelo Percebendo o que se está a fazer, percebendo o que está a acontecer. E isso foi um dos maiores desafios e continua a ser na nossa profissão, nomeadamente na saúde. Eu acho que é transversal a todas as áreas do jornalismo, mas em áreas mais técnicas, se tu não percebes o que estás a ver, o que está em causa, não consegues contar uma boa história.
08:41 Jorge E alguma vez percebemos mesmo, porque no fundo o que tu estás a ver é… Tu estás a ver um procedimento que nunca foi feito, de uma coisa que nós não dominamos, arrisco-me quase a dizer que mesmo os próprios médicos tenham um domínio limitado daquilo que estão a fazer. A nossa ignorância é infinitamente maior do que a nossa certeza, do que o nosso saber. E ao mesmo tempo, os teus telespectadores, as pessoas que te seguem, aquilo que esperam logo no telejornal, quando ligam é a história perfeita, que tu contas aquilo com todos os pormenores e que eu entenda essa complexidade
09:15 Paula Rebelo como uma simplificação absurda. É, o segredo é não contar todos os pormenores, só contas os pormaiores. É retirar a… é editar a poeira? É, até porque tu também não vais ensinar as pessoas no fundo a fazer a cirurgia, não é? Convém que não. Pois convém. Não, de todo. O que nós queremos é que as pessoas percebam a inovação e o que é que aquilo traz para a vida efetiva das pessoas. E também o que nós queremos é que as pessoas, mesmo que não sofram daquela patologia, se ponham num lugar do outro e percebam, olha, podia ser a minha mãe, podia ser a minha filha, podia ser o meu sobrinho, pode ser a minha neta. Quando nós temos esta capacidade de conseguir contar uma história, a partir do testemunho do outro e da mudança que é provocada no outro, é maravilhoso. Mas para isto precisamos que os especialistas, e isto é um desafio ainda hoje, saibam comunicar. Na altura, eu não queria que o professor Rui Vaz explicasse como é que se faz a cirurgia, não é?
10:24 Jorge Mas voltamos à história, não, não queremos. Entramos num túnel, porque ainda por cima, no caso dos especialistas, eles conhecem de tal maneira, com tanta profundidade aquilo que estão a fazer e como estão a fazer, que sabem demais, primeira questão. E saber demais pode ser uma barreira para falar o indispensável,
10:43 Paula Rebelo quase por analogia, para nós conseguimos perceber onde é que está o caminho daquele túnel. É, aquilo que eu lhes peço muitas vezes é, não tem que ser simplista, mas tem que ser simples, tem que simplificar, porque nós não tiramos o curso e nós queremos que, e eu dizia muito isto, eu quero que a minha avó perceba, como eu quero que o meu sobrinho de 7 anos e agora 15, perceba, eu quero que os meus colegas percebam, eu quero que os portugueses percebam, para que se gostem da história, percebam a mais valia. E esta desconstrução não é fácil, mas é possível, e eu acho que nós temos tido resultados extraordinários ao longo dos últimos 20 anos. Tem melhorado as fontes, a maneira como elas estão a falar, as pessoas que aparecem a falar, não é? Tem, eu acho que nos últimos anos, e acho que a pandemia também nos deu uma ajuda grande em acelerar esse processo, que estava assumidamente estagnado. A pandemia ajudou-nos muito a necessidade de comunicar a ciência, de se fazer perceber a ciência, até pelos riscos crescentes, face a outras formas de comunicação, da desinformação e das falsas notícias. E em ciência e medicina, isto é uma coisa exponencial. Portanto, eu acho que os atores no terreno perceberam, finalmente, que não estão a falar uns para os outros, que estão a falar para a comunidade. O tal termo bonito que nós estamos a usar há alguns anos, o itracia, mas que se formos à comunidade perguntar o que é que isso quer dizer, as pessoas não fazem a mais pequena ideia. No fundo, é informação, e as pessoas perceberem a informação
12:24 Jorge e a saber incorporar na sua própria vida e tirarem delas mais valias. Então e o jargão? Lá está, o superespecialista tem um conjunto de palavras, um conjunto de expressões, um conjunto de coisas que só atribo, neste caso, dos especialistas que conseguem perceber, e aquela sensação, ok, eu agora vou falar na televisão e estão os meus pares todos a ouvir, e, quiçá, até dizer, então, mas tu disseste aquilo e aquilo não foi suficientemente rigoroso, porque tu não seguiste o canon cirúrgico, o canon técnico todo,
12:58 Paula Rebelo percebeu a Dona Maria e é julgado pelo professor doutor do hospital do lado? É engraçado, eu tenho um exemplo ostensivo com isso, que é a roncopatia. A roncopatia. A roncopatia. E eu tive um exercício que eu acho que isso aconteceu há cerca de 20 anos, mas que mantenho até hoje, e que dou nas aulas porque acho que, efetivamente, ainda hoje, os jovens médicos têm dificuldade em ultrapassar esta barreira. Com a preocupação de não cair no julgamento dos pares, então, para a reportagem era roncopatia, mas nós queríamos, efetivamente, era chegar à Dona Maria, que tinha o seu marido, o Sr. Joaquim, que racionava terrivelmente. E isso nós sabemos o que é que está a falar? Aí já sabemos o que é que estamos a falar, mas dizer roncionar para os pares, aquilo era quase, por favor, mas que coisa tão básica, mas que coisa tão… Mas senhores, vocês não estão num congresso científico, vocês estão a falar para a comunidade, nós estamos a falar de saúde pública. A falar para o povo. A falar para as pessoas, para a comunidade. E hoje é muito giro, não é? Lá vem a história da literacia, do tal Pula Verão, não é? Falou-se muito de literacia, mas depois vão para a televisão dizer roncopatia. É chique. E vejo eles em roncionar. Olha, vale nos deuses, senhores. Quer dizer, não se dá para agradar ao deus e ao diabo, não pode ser assim, não é?
14:23 Jorge E tu consegues convencê-los já que eles estão a falar para o grande público? Sim, eu acho que na maior parte dos casos posso dizer muito honestamente que sim. Tem a ver com a confiança também que tu tens em relação a eles?
14:35 Paula Rebelo De uma parte sim, mas eu também acho que não é esse mérito todo, acho que finalmente perceberam. A alguns é preciso fazer esse reforço da ideia. Professor, doutor. E ainda somos muito um país de professor, doutor. Mas, professor, é importante, é saúde pública, é contributo, é o seu conhecimento que queremos partilhar com quem não tirou o curso consigo. E muitas vezes até dão um exemplo muito engraçado. Olha, se é cardiologista, se calhar até o pneumologista precisa de perceber.
15:11 Jorge E às vezes eu acho que esta frontalidade ou esta honestidade leve resulta… E permite-lhes no fundo baixar um degrau de cátter e aproximar-se dos comuns mortais. Tu falaste da pandemia, é um bom exemplo, porque na pandemia, todos falamos de pandemia, todos os que sabíamos, todos os que não sabíamos, todos aqueles que sabiam mas tinham a incerteza, porque amanhã é diferente de hoje.
15:40 Paula Rebelo Qual foi a tua sensação de cobrir a pandemia enquanto jornalista? Foi a primeira vez na minha carreira em que o não sei era a notícia mais séria e credível que se podia dar. E achei maravilhoso, percebi que estávamos a viver tempos de uma honestidade intelectual que credibilizava também a ciência. E foi a primeira oportunidade que eu acho que nós tivemos de explicar como é que a ciência funciona. Sem ao mesmo tempo pôr em causa que era o que estava a acontecer. Portanto, esta coisa do achismo, das certezas que muita gente tinha no início, quando no início não sabíamos absolutamente nada, permitiu-nos fazer uma seleção natural dos ditos especialistas.
16:26 Jorge Para dizer que não sei, só os muito bons? Só os muito bons.
16:31 Paula Rebelo Pode ainda dar-se esse luxo no fundo de dizer, eu sei muita coisa, por acaso isso eu ainda não sei. E quando punham as questões para as quais eram precisas as respostas? Isto era de uma honestidade intelectual e científica que nos permitiu explicar a ciência.
16:47 Jorge E não te temos que isso possa criar uma sensação de incerteza? No fundo, ainda há um bocadinho que estávamos a falar, por exemplo, do professor Henrique Barros, que é, quando alguém como o professor Henrique Barros aparece e diz eu souber isso, não sei, ou a dra. Graça de Freitas, a diretora de Jalda, souber isso, não sei, não temos que o público possa dizer, uau, então se nem estes sabem o que temos um problema, então quem nos acorda?
17:11 Paula Rebelo No fundo, quase essa ideia quase mítica de que há alguém que detém o saber absoluto sobre as coisas. Sabes o que é que ajudou o espírito do Nião? Ou seja, os melhores, das suas áreas, terem essa sinceridade em comum, mas definirem imediatamente quais eram as respostas para as quais nós precisávamos de maior permanência. E isso estabeleceu um sentido de partilha, que aliás assistimos como nunca, da ciência a nível mundial. E as respostas começaram a surgir rapidamente. Houve erros de comunicação terríveis, houve precipitações comunicacionais que não eram,
17:51 Jorge confesso, expectáveis de algumas pessoas que já tinham tantos anos de terreno, tanta prática. Mesmo estando no ar todos os dias, a toda hora? Às vezes é o pior. Se quer dizer, se nós os dois estivemos a conversar, a repetir este podcast todos os dias, a toda hora,
18:13 Paula Rebelo a nossa probabilidade de nos sair algo ao lado aumenta exponencialmente? Exponencialmente ou eventualmente também a entrarmos em contradição com algo, porque a mensagem também pode ter passado de forma errada.
18:24 Jorge E aí vamos relastar, os jornalistas aí vão buscar o clipe, os 30 segundos em que as máscaras afinal não são precisas, afinal as máscaras são precisas, e nós entramos aqui neste túnel de contradições, ou achas que isso, enfim, faz parte da regra do jogo e portanto há que viver com ela?
18:42 Paula Rebelo Faz parte. Não é o ideal, mas faz parte da regra do jogo. Até porque estamos a falar de protagonistas, atores, são estas as pessoas que lideram estes assuntos, que lideram estas áreas, portanto quando isso acontece, também fazermos de que? De conta? Também não pode ser.
19:01 Jorge Temos que mostrar. Então e a tua sensação de ir pela primeira vez a uma unidade de cuidados intensivos, ver os primeiros casos de entrenados graves de Covid-19? Covid-19. Já falaste agora do faxino que é entrar numa sala de cirurgia para o amanhã que cantará,
19:19 Paula Rebelo sentiste medo, sentiste curiosidade? Eu, para te ser muito honesto, não fiquei muito surpreendida, porque eu já tinha passado por esta situação com a gripá. E na altura eu acho que a nossa memória nestas coisas falha-nos de um modo perverso. A gripá não foi assim há tanto tempo. E eu já tinha assistido a isto nomeadamente com pessoas obesas e grávidas, e grávidas, que é terrível também.
19:47 Jorge Que ficavam sem capacidade de respirar, tinham que ser internadas e tinham que ser ventiladas. E ventiladas e ECMO, que foi a primeira vez que comecei a ouvir falar no tal mecanismo extracorporal. Em que o sangue passa por dentro de uma máquina, fora do corpo e… Precisamente, e depois volta a entrar muito ficção científica, mas a primeira vez que tivemos isso foi na gripá. E as pessoas têm a noção de que estas máquinas de ECMO hoje são usadas regularmente no nosso SNS, nas unidades de cuidados intensivos elas estão lá e estão a ser utilizadas, seja para a Covid, seja para doentes graves que precisam de ajuda.
20:18 Paula Rebelo Jorge, desde bebés, desde bebés até pessoas com patologias graves, ganharam foi uma notoriedade com a Covid por causa dessas falências respiratórias e cardíacas agudas. Portanto, para dizer muito nisso, a surpresa não foi total. O que é que te impressionava mesmo era o indissidídeos. De repente poderíamos esperar doentes, imagina, cardíacos, grandes fumadores, os obesos continuavam a ser um grupo de risco. Não, eu fiquei… a primeira vez que eu entro e ainda com aqueles fatos todos… Escafandros. Escafandros mesmo, mesmo. E devo recordar aqui que eu pesava… era incrível. Dez minutos daqui tu estavas alagado dentro do teu corpo. Imagina os profissionais de saúde num turno de 8 a 12 horas. Porque aquilo é estanc? É completamente estanc, é que tu não respiras. Quase claustrofóbico? Não, é uma sauna total, é uma sauna permanente durante 8 a 12 horas. E ele, estoicamente, não há nada como vestir a pele do outro, em tudo na vida, na verdade. Mas eu lembro-me que na primeira vez que eu entro, quando a vida era uso com o repórter de imagem, tivemos um momento de respirar fundo no sentido de percebermos. Está aqui uma pessoa, é uma mulher, que tem exatamente a mesma idade que eu. E não tinha nenhuma doença diagnosticada antes. Viste-te ao espelho? Eu vi-me ao espelho, mas completamente, e pior. Vi o meu pai, vi a minha mãe. Foi, agora que me retransportas para estes momentos, foi particularmente difícil, porque nós não estávamos a falar de pessoas só com comorbabilidades, neste palavrão, não é? Com doenças, com alguns fatores de risco. Jovens, eu vi jovens de 17, 19, 21 anos, entrevistei um de 23, depois na Unidade de Cuidados Intermédios, não tinha tido nada. Lembro-me de uma cirurgiência do Hospital de Santa Maria da Feira, a chegar aos seus 40 anos, corria maratonas. Nunca tinha tido nenhuma doença antes, não tinha nenhum problema de saúde, nenhum fator de risco, corria maratonas. É um azar dos távores? Ainda hoje, Jorge, essa pessoa está a recuperar, e já passaram dois anos, ainda está em recuperação, está chamada Covid longa.
22:46 Jorge É o azar dos távores. E quando tu perguntas a um médico, que é, porquê que isto aconteceu nesta pessoa super saudável, lá está, a ignorância é maior que o saber.
22:56 Paula Rebelo É, porque às vezes, talvez não, porque eles depois, por acaso, até explicavam muito bem. Nomeadamente, tivemos a sorte de ter pessoas como o Miguel Castenho, a explicar, ou o Miguel Prudência, a explicar muito bem isto. Às vezes, quando somos até mais saudáveis, o nosso sistema exacerba.
23:14 Jorge É tão forte a nossa imunologia, que há tantas a revolta dos…
23:20 Paula Rebelo A fúria do ódio, sabes? E dá ao contrário. E, portanto, é esse exacerbamento que, no fundo, é uma hiperreação? É uma hiperreação na defesa. Aí funcionava ao contrário.
23:31 Jorge E o que é que te contaram estas pessoas, os sobreviventes da Covid?
23:34 Paula Rebelo Os sobreviventes da Covid. Na altura era a surpresa total, não é? Eu os contava, mas… Se calhar, imagino que umas pessoas que tenham diagnóstico de cancro e que continuam a ouvir isto, não é? Porque eu, não é? Não havia… No asturial familiar, olha, no cancro do pulmão, eu até nunca fumei. Por exemplo, temos estas histórias. E na Covid foi um bocadinho isto, foi a surpresa total. Foi assim, tipo, um tsunami. Sem dúvida foi um tsunami. Mas isto também estamos a falar aqui na fase inicial. Em que não havia vacina? Em que não havia vacina. Depois, quando começou a haver vacina, houve uma coisa já mais extraordinária que era indescritível,
24:17 Jorge que era, efetivamente, que ela estava era quem não estava vacinado. Isso dava para ver. Isso dava para ver. O que é muito curioso, mesmo em termos de comunicação, perceber como é que um fenómeno, que a primeira fase é uma fase de susto e de medo, a segunda fase é uma fase de exigência a alguém que faça qualquer coisa, ou que é que nos protege, é a máscara, é lavar as mãos, é não estarmos juntos uns com os outros, é a vacina, é o que for. E depois, quase uma terceira fase que é aquela que eu chamo a fase negacionista, que é… Se calhar eu duvido que isso nos faça qualquer coisa, não é? Que é um processo profundamente irracional.
24:56 Paula Rebelo É um processo de cansaço. É o processo quando tu te habituas à tragédia. Ou seja, é a banalização do horror, é o que nós assistimos, se quiseres, hoje, a relação à guerra da Ucrânia. É a banalização do horror, mas também, ao mesmo tempo, é o nosso instinto de sobrevivência ativado, não é? O risco, por exemplo, das imagens e das diontologias que nós falamos muito, de mostrar o horror, é que nos habituamos a ele. O que é que se mostra e o que é que se esconde? O que é que se mostra e o que é que se esconde? Em saúde pública, acima de tudo, e ali, nessa fase, essa questão era muito premente. A certa altura é o não horrorizar, mas mostrar o que pode acontecer. E ali perdes algumas barreiras. Ali tens que mostrar os ventilados. Ali tens que mostrar… Eu não digo identidade, obviamente, mas… Isto tudo aí, mas tem que ser. Isto tudo aí tem que ser. As pessoas lá fora têm que perceber a gravidade do que nos está a acontecer. Isto não é uma teoria da conspiração que, de repente, estamos aqui a criar e vai tudo para casa e ficamos todos isolados uns dos outros. Isto é real. E depois alguém quer vender umas vacinas e ganhar dinheiro aqui com umas coisas e tal. Não, isto é real. Isto está a acontecer mesmo. E pode acontecer a mim, pode acontecer a ti, pode acontecer aos nossos. E essa ideia é terrível, não é? Na altura, eu lembro-me, eu estive quatro meses sem ver os meus pais. E o meu pai estava revoltadíssimo. Para os proteger. Sim, mas o meu pai estava revoltadíssimo. Era de género. Olha, qualquer dia, ou nós não existimos, ou nem te lembras, ou a gente já nem te lembra de ti. E eu só me lembrava de dizer aos meus pais, eu estou na linha de frente. Se eu sou contaminada, se eu sou infectada… E essa era uma possibilidade? É uma possibilidade, não se podia dizer que não. Apesar de que eu tinha mais medo de ir ao supermercado do que ir fazer as reportagens aos hospitais. Porque estavas protegida. Os tais escafandos, não é? É curioso como o nosso ambiente funciona. Eu ficava mais nervosa de ir ao supermercado do que ir ao hospital fazer reportagens. Porque tu foste ao centro do fracão, mas estavas protegida? Estava. Eu sentia que sim, eu sentia que sim. A sério, eu nunca tive nenhum tumoro. Confesso, nunca tive nenhum tumoro num hospital. E entrevistei doentes infectados. Apesar do risco que existe, e tu sabes disso. Mas o risco era em todo o lado. Portanto, a certa altura, houve… Nós estamos aqui também para isso. Não é numa altura destas em que tu dizes que não. É a tua profissão.
27:15 Jorge Tens que ir. Tens que ir, estás protegida. E sentes esse empurrado.
27:20 Paula Rebelo Tu tomaste as medidas que te foram recomendadas. Estás a seguir os protocolos. E pá, faz. É a tua profissão, é a tua missão, tens que ir. Mas às vezes é mais difícil de explicar a quem nos está próximo. E transmiti, por exemplo, aos meus pais durante quatro meses. E eu, se me acontecer alguma coisa, se ficar infectada, se eu vos infecto e acontece alguma coisa, eu nunca na vida não vou provar. Mas isto é um jogo de emoções. E assim foi. Tu estás a contar essa história.
27:49 Jorge Impecáveis. Impecáveis. Nós maltratamos muito os velhos neste período, não foi? Nós abandonamos os mais velhos. De alguma maneira. Lá está. Tu estás a contar a história. Eu não vou há quatro meses. Eu estou a pensar, eu não fui à Viana durante vários meses também. E é assim, que dia acho, ok, há um bicho, há um vírus, há… mas há os afetos, há os abraços, há os beijos, há… E dói. E há outras feridas grandes. E depois a outra parte que é completamente… Agora já posso dizer, quase ridícula. Olha a criança, olha o menino e a menina de três anos.
28:27 Paula Rebelo Não pode desabraçar os amiguinhos. Como não podes abraçar os amiguinhos? É contra a natura, não é? É contra o crescimento. É bizarro, não é?
28:35 Jorge Não, e é contra o desenvolvimento. Olha adolescente, tensão, não podes beijar o teu namorado ou a tua namorada na boca. Espero que eles tenham feito a batota toda que puderam.
28:44 Paula Rebelo Sim, mas eu acho que hoje em dia podemos dizer isso. Podemos, mas na altura não, não é? Na altura eu acho que não. Tu achas que fomos longe demais nesse peso comunicacional que demos à ameaça? Eu sempre que me fazem essa pergunta, eu digo sempre que à terça ou à sexta, a partir das nove da noite eu sou sempre bilionária, milionária, percebes? Sou uma excêntrica de eurobilhões. Não consigo fazer essa leitura dessa maneira. Eu acho que nós passemos períodos difíceis e devo-te dizer que tivemos erros comunicacionais por parte das autoridades da saúde, mas também nunca tínhamos vivido um desafio a este nível. E nós estamos a ver a nossa concha, mas lá fora aconteceu a mesma coisa. Sim, igual. Portanto, e uma das coisas, por falar-se nos outros países, é que às vezes deveríamos olhar mesmo para o que se passa nos outros países, mesmo em termos do que dizemos e fazemos do nosso Serviço Nacional de Saúde. Eu ainda agora, se tivesse a sorte, a fazer uma reportagem neste colmo, a propósito de um médico português, que se quiseres falar disso até é muito interessante. Claro, quem é ele? O que é que ele tem de especial? Quem é? Francisco Valdac, é diretor do Centro de Endoscopia Avançada do Hospital de Matosinhos, que é um centro de ponta que há um ano funciona de uma forma completamente diferente desde do cancro gástrico até ao cancro de colo negreto. Nós estamos a falar em retirar tumores superficiais que podem ter 18 cm de uma só vez, sem cicatrizes e se calhar com menos de 24 horas de entretenimento.
30:18 Jorge Mas além disto ser notícia, eu descobri isto numa visita protocolar em setembro do ano passado a acompanhar a Ministra da Saúde. Protocolar quer dizer aqueles serviços, oh que aborrecimento, vamos lá,
30:31 Paula Rebelo que nas picaram o ponto.
30:32 Jorge Vamos acompanhar a Ministra da Saúde, era só isso que eu queria dizer. E que normalmente acaba numa reportagem em que nós falamos da importância de qualquer coisa.
30:40 Paula Rebelo De tudo menos do que lá foi fazer o Ministro. Menos do fundamental. Menos do que lá foi fazer. É o comentário das Pumas dos Dias. A urgência está fechada, vai haver uma greve marcada para não sair onde etc. Mas eu vou ir nessa sessão, nessa visita protocolar, uma coisa que me chamou a atenção, além da inovação que nós estávamos a assistir no Serviço Nacional de Saúde, porque isto é inovação no tratamento dos doentes, eu de repente percebi nos discursos que o diretor do serviço, nós tínhamos conseguido ir buscar ao Karowinska na Suécia. E eu fiquei a pensar como? Levantou o orelha logo. Levantou o orelha logo. A repórter ficou alerta. Como? Mas como é que nós conseguimos ir buscar um diretor de serviço que cá não vai além dos 2.000 euros por mês, eu quero deixar bem claro, 2.000 euros por mês ao Karowinska na Suécia,
31:33 Jorge que é só um dos maiores e conceituados hospitais do mundo. E acabei por ficar com aqui o bichinho. Não deu para reportagem do dia, o esforço dos dias. Lá está, tinha aqui no comentário, atenção que o teletransporto é daqui a duas horas, anda depressa.
31:49 Paula Rebelo Não, não, não, o jornal da tarde é daqui a meia hora, amigo, temos que ir fazer já. Direto, tens aqui o teu escutador, tens aqui a tua câmara, vamos lá. Nós temos 40 minutos para meter a peça no ar. E eu fui desenvolvendo aquela ideia e falei com a assessora e Paula Carvalho, tens que me explicar isto como deve ser, como é que o LIS de Matosinhos, não é o São João, não é o Santa Maria, não é os hospitais universitários de Coimbra, mas vão sacar um Francisco Valdac a este colmo. E eu percebi-me que aquilo sai fora da caixa do Serviço Nacional de Saúde completamente ortodoxo. O compromisso dele foi 3 semanas cá, em Matosinhos, portanto, a esfiar o serviço, e uma semana no Karowinska, a manter-se uma semana por mês no Karowinska. E aí a minha cabeça fez o… O melhor de dois mundos? Fez os 180 graus, como é que é possível teres o melhor de dois mundos no Serviço Nacional de Saúde, com modelos organizacionais tão ortodoxos? E decidi que eu tenho que fazer esta história. E passado um ano consegui fazer esta história, saiu agora, e acompanhamos o professor Francisco Valdac numa semana desses meses ao Karowinska. O que é que este homem tem de especial? Este é o homem que tem uma entrega ao serviço público, ao mesmo tempo que tem uma paixão imensa para a inovação. É um homem que está focado na inovação, mas não perdeu o lado humano, que é uma coisa que é um desafio dos dias de hoje, e inclusivemente para as novas gerações de profissionais de saúde. Portanto, ele não consegue estar a fazer sempre a mesma coisa, é daquelas pessoas, mas e atraiu-o imenso poder criar um projeto de raiz com um modelo organizacional que ele poderia mudar de raiz. E um ano passados é incrível entrevistar os assistentes operacionais, os enfermeiros e os internos. Os enfermeiros, por exemplo, falam de uma motivação reconquistada, entrevistei a Joana Carvalho, que está enfermeira há 23 anos, que não se lembra de estar tão motivada para trabalhar como está agora. O João Parara, interno de gastrointroologia de quarto ano, pensa seriamente ficar no Serviço Nacional de Saúde, porque a inovação e o modelo organizacional que está a assistir é… Cria um oásis? É um oásis que me dá a experiência que possa ser multiplicado, porque se nós conseguimos ir buscar ao melhor onde se faz bem, é sinal que isto pode funcionar e proliferar. Por exemplo, eu perguntei ao chefe do professor Francisco Valdac, na Suécia, então como é que é passar de ter a 100% para 25%, e ele dizia, bem, não é fácil, não é nada fácil, mas aqui no Caralhuisca nós nunca trabalhamos como uma ilha.
34:51 Jorge Uau! Olha, uf! Isso é pensar à frente?
34:54 Paula Rebelo Muito à frente. Nós não trabalhamos como uma ilha, os médicos que aqui trabalham também trabalham noutras instalações ali e ali e ali. O segredo é flexibilidade, o que interessa é a equipa,
35:06 Jorge e a equipa funciona, se a equipa funciona, qual é o problema? Depois cria uma espécie de polinização no fundo, porque as abelhas vão andando por aqui e por lá, aprender que lá, a experiência do terreno, seguramente, o que aprendem matozinhos a experimentar coisas, é também altamente recompensador e traz coisas.
35:24 Paula Rebelo E o que eles trouxeram de lá também é isso. E a cereja do topo do bolo foi quando o Emmanuel Salcellas, o repórter de mais, estávamos a sair do Caralhuisca e ir para a Estação dos Combois, havia uma greve de comboios, por curiosidade, por coincidência, nesse dia. E chegamos à estação para voltarmos para este comboio, e diz, e estava uma equipa de televisão sueca, que estava muito curiosa a olhar para nós, porque não estava a reconhecer as nossas insígnias, não é? E ele fala conosco em sueco, e eu disse, não é? Inglês e tal. Então, estão a fazer a greve? Eu? A greve? Pois, porque nós há dez anos que não tínhamos greves aqui na Suécia de transportes. E eu, ah, bom. E olhei para o Emmanuel e disse, nós somos… Não, nós viemos fazer uma história aqui no Caralhuisca, portanto, temos aqui o médico português, assim e tal, e aqui os bons métodos que estamos a levar para Portugal, ao que ele diz. Ah, sim, nós aqui só dizemos mal. E eu percebi que, se calhar, nós europeus somos muito mais parecidos do que se calhar pensávamos. Porque somos muito exigentes? E, pai, olha que eu não sei se é por exigência. Ou desdinhamos aquilo que está a acontecer? Eu acho que nós às vezes temos a falta de noção das realidades. E damos pouco valor ao que temos.
36:43 Jorge Nós temos fragilidades que temos que cuidar urgentemente no Serviço Nacional de Saúde. Tu és uma observadora do SNS. Como é que tu ves o SNS neste momento? Ou o sistema de saúde? A gente até pode ir a um bocadinho mais largo, mas…
36:57 Paula Rebelo Como é que tu ves o sistema de saúde em Portugal? Olha, eu estou numa fase de gestão de expectativas. Porque prometeram-me tanto no final do ano passado… A mudança? A mudança. A maior mudança em 43 anos do SNS. E no fundo é, se se concretizar…
37:12 Jorge Vai acontecer uma mudança reorganizativa no sistema? É isso que está preparado? No fundo, criação de unidades locais de saúde que juntam hospitais e centros de saúde? A tal integração de cuidados? O que é… Teoricamente? Em português, corrente, ir do centro de saúde para o hospital, do hospital para o centro de saúde ou para um centro de cuidados continuados de uma forma… enfim…
37:34 Paula Rebelo Jorge, na realidade seria os médicos falarem uns com os outros. Os enfermeiros falarem uns com os outros. O processo do doente estar disponível para todos, não é?
37:45 Jorge Mas o sistema não está montado para isso. Isto é, a dificuldade que um doente tem… Estamos a falar de ilhas, no fundo. A ilha, o hospital, a ilha, centro de saúde, a ilha…
37:53 Paula Rebelo A tal ilha, não é? A tal ilha. E vais para ali e repetes aí os teus exames outra vez, porque aquilo ainda não está digitalizado a testar, mas… E fora o desfazimento dos tempos, não é? O doente, se calhar, entra a consulta do médico de família, que se calhar também pode ter que esperar nos quantos meses, mas depois a consulta para encaminhamento para a especialidade, e depois temos urgências lutadas. É a porta que está aberta? Se calhar temos, não é? Se calhar temos, não é? As histórias que nós temos, o que contem é acesso, acesso, acesso? Acesso conta muito, mas não é só o acesso, há outras falhas.
38:28 Jorge Olha, e quando tu falas de… Quando tu falas de… Da questão do sistema e de as tetas, nós estamos a desdivinhar aquilo que está a acontecer. E eu, quando vejo, muitas vezes em muitas reportagens, em que nós percebemos que 999 vezes aquilo ocorreu bem, as coisas funcionaram e é extraordinária, e a milionésima vez, por um conjunto de erros, ou de malfuncionamento, ou azar dos távores, algo falhou. É essa a história que eu vou ver na imprensa? É essa a história que tu vais ver. Isto é uma disfunção ou são as regras do jogo? Tem a ver com a expectativa. Eu espero que o sistema, a minha expectativa é que o sistema responda sempre assim,
39:18 Paula Rebelo e quando não é quebra do padrão, logo a notícia. Eu não espero assim, porque isso nós somos, e o sistema é feito por pessoas, mas o expectável é que as pessoas sejam boas, aquilo que fazem. Portanto, notícia, um princípio jornalístico básico, é o 8 ou o 80. Ou é quando deixam de ser bons, ou é quando são extraordinários. Extraordinários ou catastróficos? É essa a regra do jornalismo, quer dizer, que no fundo também é o que funciona conosco como ser humano. Quando vamos a conduzir numa rua e há um acidente, onde é que tu vejo a fila maior? Do outro lado. Exato. Isso não te diz nada em termos de ser humano.
40:04 Jorge É uma espécie de cuscovilhice quase existencial, de despreitar o que não está a acontecer bem.
40:08 Paula Rebelo Eu acho que com um jornalista, que já levamos aqui há uns anos, às vezes até fico muito admirada, a sorte é que já ganhamos carapazes, não sei quem não, vocês são os vampiros que querem é sangue. Quer dizer, eu acho que as pessoas não percebem efetivamente o que é que o jornalismo trata. Nós temos que falar de coisas sérias, de um modo sério, mas as regras do jornalismo não são noticiar o que é normal. O que é que se noticia? Que critérios é que se usa para decidir o que é que é notícia? No modo muito simplista, vais ao 8 ou 80, não é? O que é muito bom ou muito mal? No meu caso, eu funciono muito por serviço público e o que faz de causa pública e o que contribui efetivamente para aquilo que tem que mudar. E és mais exigente que o serviço público? Sou mais exigente que o serviço público e não facilito o privado também. Não vale a pena estar aqui a dizer com coisas. Eu acho que lá está, para dar notícia de privado, o privado é o exigente, o extraordinário também, não é? Ou então, fez a geneira. E aí tu vais lá? E vamos todos.
41:15 Jorge E as histórias em que acontecem alguma coisa que para nós é insuportável? Eu estou pensando neste exemplo desta criança que infelizmente não sobreviveu no álbum. Tu bebe inglês? Que nós olhamos para esta história ainda antes de saber nada sobre ela, antes de saber o que é que aconteceu, como é que aconteceu, se o sistema respondeu bem, se não respondeu. Mas a primeira angústia é as crianças não morrem.
41:39 Paula Rebelo E a partir deste momento é tudo insuportável? Tudo insuportável. Até fazer valer os valores jornalísticos. E fazes de uma influicidade contra a Natura, quase um circo. E isso como jornalista Daime, devo-te dizer. Estas histórias são horríveis, mas há crianças a morrer todos os dias. Mesmo que tudo aconteça bem na resposta? Mesmo que tudo aconteça bem na resposta, obviamente. Eu lembro-me que em maio do ano passado fiz várias reportagens, e todos nós fizemos na realidade, das urgências e em treinamentos de teatria estarem multados. Era o vírus ciencial. Que os pediatras conheciam bem, que alguns pais infelizmente também conheciam bem, mas nós na comunidade em geral nunca tínhamos ouvido falar. Não estávamos alerta? Não fazia parte da nossa realidade. Era um vírus respiratório do inverno. Mas na verdade é um vírus terrível. Que afeta muito as crianças abaixo de um ano, e principalmente as crianças até aos três meses. É quando elas estão mais frágeis e o vírus pode surpreender, mesmo as crianças saudáveis. E também o vírus importa dizer que é o maior causador das bronquiolites. Esta criança inglesa tinha uma bronquiolite diagnosticada, estava medicada há pelo menos dois dias. Os pais estavam a passar férias no carvoeiro. Ela vai para o sítio certo, que é a urgência de Portimão. E há um agudizar da situação. A criança tem uma primeira paragem cardiorrespiratória na urgência, é reanimada, é ventilada. A urgência de transporte de bebês de faro não estava a funcionar, mas o helicóptero estava. E às 15h58, nem meia hora depois da ativação, esse helicóptero estava a entrar. A criança mal entra no helicóptero, segundo os relatos que estão devidamente documentados no INEM, tem uma segunda paragem cardiorrespiratória. Infelizmente não houve o mesmo resultado que a primeira reanimação. Eu não consigo perceber como é que tu consegues fazer disto um caso de falta de assistência, de atraso de resposta. Porque a emoção sobrepesa mais? Há uma crise de recursos, nós sabemos, mesmo no Algarve, mas estabulcer uma relação direta, não estabulcendo os pontos verdadeiros de uma história. Num ponto do contexto, não explicando? Não explicando o verdadeiro. Eu acho isto… não quero dizer o adjetivo. Porque é mais fácil, é mais binário ir ao lado rudo da história, ao lado que estimula o medo? O alarme social, pois claro, e o alarme social. Eu percebo que seja importante continuarmos a dizer, falta meios de especialidade no Algarve, há uma ambulância no operacional no Algarve. Isso são factos?
44:33 Jorge Isso são factos. Mas de facto o resto da…
44:35 Paula Rebelo Mas a relação nexo-causalidade não existe, portanto não podes fazer isto. E quando alguma vez alguém tiver tempo para conseguir investigar, porque seguramente será investigado… Estamos registros, obviamente, e isto tem que ser tudo bem a auditoria. Conclua-se o que se concluir nessa altura já dificilmente será notícia ou será uma notícia banal, um rodapé? Se é que é notícia ou um rodapé. Porque já passou? Já passou. Já tens outra história para te interdizer.
45:05 Jorge Mas isso é a história da tua vida, porque na realidade, há um pequenino falavas da história do Karolinska, desde o momento em que detectaste a história até ao momento em que conseguiste fazer… Um ano. Um ano. Era mais fácil ter desistido dela. Mas não, quando são outras histórias tu não desististe dela. Não, eu estou com caso, mas… Mas não desististe dela. Porque amanhã há outro jornal para imprimir, amanhã há outra coisa para fazer.
45:31 Paula Rebelo Mas há mais notícias para fazer também. E se estamos em concorrência, pá, e com mais 50 ou 100 notícias, não é?
45:37 Jorge Como é que tu lidas com… olha, vê aqui no jornal esta notícia que acabou de sair e que tu sabes que já fizeste há 15 dias, que se calhar tu és a autora primária.
45:47 Paula Rebelo Tenho uma paciência de jogo como todos nós temos. Não resmungas? Então não. Mas também não vou estar aqui a confesar os meus precaditos todos. Não, relembro. Eu acho que às vezes também é muito natural, porque há uma rotação dos fias. Que lá está, não gerem uma história, gerem pá e 50 ou 100. E a saúde é só uma pequenina parte. Não é uma pequenina, mas é uma parte.
46:08 Jorge Sim, mas concorre com a política, concorre com o futebol, concorre com a economia, concorre com…
46:11 Paula Rebelo E com aquilo que tu não consegues controlar, com uma catástrofe natural, com o Papa, com… E lá vai a tua história para a gaveta. Com a queda de um governo, obviamente. Agora não vais pôr. Obviamente, mas isso é a atualidade. A atualidade de sempre ser a líder do nosso caminho. Mas na verdade há uma grande valorização da saúde, porque é transversal e afeta, obviamente, a todos. Não há uma desvalorização assinida. Às vezes, até amigos comem tudo na vida. E aí eu acho que nós temos que ser, e eu estou a falar no global, mais sérios e mais especialistas, ou pelo menos mais rigorosos no modo como pegamos em alguns assuntos. Até porque a economia de saúde e a política de saúde não é fácil. É que preciso ter os contextos também, às vezes. Ter um histórico, saber a quem tu perguntas, se tu conseguis explicar… Claro, teres as fontes para cruzar informação, que é outra coisa, porque é um setor onde facilmente és manipulável. Mas fontes são sempre interessadas? Por natureza, não é? Fontes são sempre interessadas, são, mas há uma coisa que eu costumo lembrar sempre. De que é que te adianta seres o maior especialista da área, reconhecido internacionalmente, se nunca estás disponível, se nunca atendes ao teu fone ou nunca estás disponível para dar uma entrevista? És muito bom, mas nunca apareces. Não existes, no fundo, mediaticamente. Mas depois és o primeiro a criticar um colega, a intervenção de um colega que apareceu. Que é o segundo melhor ou de ser melhor? Ou, se calhar, até pode ser o décimo ou o vingésimo. Era o que estava disponível? Era o que estava disponível, e é bom comunicador. E há uma coisa que as pessoas têm de perceber, o espaço mediático é ocupado. A questão é porquém? E isso, muitas vezes, está muito mais nas mãos da instituição do que está nas mãos do jornalista. Por isso, eu tenho assistido e tenho batalhado muito honestamente por uma mudança desse paradigma, na sensibilização das instituições, para se darem a conhecer numa gestão de reputação, não é? E para que os especialistas partilhem o seu conhecimento. Para ocuparem o ecossistema mediático. O ecossistema mediático e contribuírem para a tal literacia em saúde, porque senão é uma contradição em si mesma.
48:25 Jorge E, portanto, quanto melhor estiveres, quanto mais disponíveis eles estejam, melhor o selo branco, no fundo, daquilo que estão a contar.
48:33 Paula Rebelo Daquilo que estão a contar e melhor será a nossa sociedade, a nossa comunidade. Melhor seremos. Falamos tanto de promoção de saúde, hoje em dia, não é? Dêem-lhe alguma ajuda. Dêem-lhe alguma ajuda, já que foram vocês que tiraram o curso, não é? Vocês têm informação, vocês tratam-nos. E, pá, contribuem, simplifiquem, colaborem. Sejamos parceiros. Falem com a Malta. Falem, não deixem ser só as versões, depois, unilaterais, mesmo em gestão de crise, não é? E, pá, colaborem. Colaborem, ajudem-nos a poder ajudar. Ajudem-nos a ser uma sociedade melhor. É, pá, é por isso que a gente também cá está. Eu adoro dar notícias positivas. E há coisas importantíssimas de saúde pública que estão a ser negligenciadas e que nós vamos falando e que nós podemos contribuir. Estas alertas que estão a ser dados agora para os dengue, para as malárias, para os zicas… Está tudo distraído. Está tudo distraído. Está tudo distraído.
49:33 Jorge Porque eles estão cá já. A gente vai vendo, o clima vai mudando, agora está aqui mais calor, isto é estranho, isto não sei o quê. Mas, na realidade, isto já cá está. Os especialistas falam isto há dezenas. Tivemos três vagas de calor em abril, não foi? Sim, mas é tipo… E quando acontecer, provavelmente o clamor público vai ser… Então não fizeram nada.
49:52 Paula Rebelo Então não se perceberam que afinal havia vacinas do dengue? Isso, e sim, fala-se sobre isto, claro, como é evidente. Olha… Está assim, mas afinal… Pelos pinhos da chuva, literalmente. Ah, vocês falaram nisso.
50:04 Jorge Já não me lembrava. Mas não falaram muitas vezes, calhar. Olha, estamos a fechar aqui uma questão que tem a ver com dita inteligência artificial. Estive a ver ontem, inteligências artificiais, agora com capacidade de produzir telas jornais, com clipes de vídeo portugueses, com narrativas completamente inventadas pela máquina. E que, na alguns momentos, parecem francamente verdadeiros. Mas eu não consigo perceber onde é que está a fronteira da verdade. Onde é que está a fronteira da manipulação. Se este facto faz sentido ir a seguir ao outro. Vamos ficar sem jornalistas? Sem capacidade de curadoria? Sem editorialização? Ou isto é um manifesto exagero?
50:44 Paula Rebelo Eu acho, muito honestamente, já aí enfrentas isso já há alguns anos, na realidade, sem inteligência artificial. Com seres humanos a fazer isso? Exatamente. Eu não acho que isso seja… É criar agendas? Exatamente. É os nossos desafios. Em qualquer área, atenção, não é? A única coisa que eu pessoalmente penso é que eu quero, no dia em que isso começar a acontecer, eu vou pedir na RTP para ter uma sala completamente isolada do género inteligência, free from inteligência artificial. Aqui sou inteligência natural? Natural. E todos nós temos dias, é certo, mas eu confio mais na minha e na dos outros, a quem vou buscar o conhecimento do que a inteligência artificial. A inteligência artificial sendo que também já é, como sabemos, muito usada na saúde e por juízes por ao bem. Mas os desafios continuam a ser muito maiores e são assumidos. Eu ainda não estou preparada para ela. Vai estar atenta? Atenta estou, atenta estou.
51:43 Jorge E daí, enquanto não perceber muito bem, uma salinha, assim de dizer, free zone. No fundo tu estás, para o arrebedo, olhos semi cerrados, olhando o horizonte a dizer, que eu estou a ver. O radar está ligado. O olhar atento sempre definiu os grandes jornalistas. Eles são sempre vigilantes e testemunhas profissionais. Existem para fazer perguntas certas e exigir respostas aos poderosos, aos que mandam isto tudo. Existem para encontrar e dar contexto. Existem para encontrar a melhor voz para explicar o planeta. O mundo está complexo e a saúde nunca foi simples. Mas é tão importante que só o multiplicar de perguntas pode obrigar a um caminho de aperfeiçoamento cada vez mais acelerado, onde cada um de nós seja mais consciente das opções de vida que toma e que cada decisão seja cada vez mais baseada em saber e ciência feita e menos em percepções ou poeira mediática. Há que estar alerta, ver as notícias em vários lugares e nunca aceitar uma narrativa demasiado redonda, demasiado binária, demasiado repetitiva. Até para a semana. Legendas pela comunidade Amara.org