Ler um livro é das coisas que mais prazer me dá.
Acontece convosco o mesmo?
Quando entramos num livro passamos a habitar num mundo novo.
Um mundo construindo entre as palavras do escritor e a nossa imaginação.
Esta edição roda à volta das palavras.
As escritas em livros. As escritas para serem ditas por atores no teatro, filme ou série.
E por isso hoje em um dia muito especial.
O convidado desta edição é um dos mais conhecidos e premiados escritores portugueses de nova geração.
João Tordo, autor de 19 livros, entre romances, ensaios e policiais.
E co-argumentista da série Rabo de Peixe.
João Tordo é um confesso leitor compulsivo.
E um documentado autor prolixo.
Escreve em abundância e qualidade.
E por isso não fiquei surpreendido quando me disse que a folha em branco não lhe causa nenhuma angústia.
É um escritor matinal e um leitor noctívago.
E deu para falar de tudo.
Da maneira como escreveu Rabo de Peixe.
Como se preparou. Como juntou ideias com os outros co-autores e como desenhou a uma das mais animadas cenas da série: o assalto à cabana de ‘Uncle’ Joe por Arruda. Um embate entre Pepe Rapazote e Albano Jerónimo.
Uma oportunidade para falar de livros e de personagens que amiúde contrariam o autor. Das conversas com os leitores com pedidos para escrever mais sobre algum personagem.
E o autor faz-lhes a vontade, continuando a saga dos personagens mais queridos.
No caso de Rabo de Peixe vem aí a segunda temporada e João Tordo pode continuar a escrever para o reviver da história.
Já agora sabiam que ao se escrever uma série como Rabo de Peixe há mesmo uma “Sala de Escritores”?
Isso mesmo, a sala onde os argumentistas trocam as ideias mais loucas e radicais, desenham as cenas e escrevem as falas dos actores.
Escrever não deve ser um exercício sem efeitos secundários.
E este alívio ao entregar o manuscrito para publicação dá uma dimensão desse misto de dor e de alívio.
Mas se o leitor e escritor João Tordo aceita essa compulsão das palavras só podemos seguir a torrente e ler o que escreve.
Dos seus viciantes policiais até aos ensaios que nos colocam perante o espelho da condição humana.
É essa condição, humana e insular, que espero ver no Rabo de Peixe, segunda temporada.
Entretanto, entretenho-me a ler o seu livro “Felicidade”. Uma história de um amor que mete trigémeas.
Preciso de dizer mais alguma coisa?
TÓPICOS
[00:00:00] . Sobre livros e a escrita da série Rabo de Peixe nos Açores.
[00:06:44] Plataformas pagavam impostos nos EUA, ICA favorecia cinema português.
[00:11:08] Cinema português precisa de mais apoio financeiro.
[00:18:42] Tripulante escapa da prisão e história morre.
[00:21:49] Arruda, antagonista de Eduardo, personagem interessante.
[00:27:05] Obsessão pelos livros desde criança, desvio para outras áreas, volta à escrita ficcional.
[00:35:54] Recentemente, comecei a gostar das minhas palavras.
[00:40:52] Lendo diversos livros diferentes e interessantes.
[00:46:03] Traçar fronteiras e limites é difícil. Crescimento pessoal requer enfrentar conflitos e amadurecer. Aceitar o sofrimento transforma em aceitação.
[00:53:39] Personagem contraria-se e altera os planos. Criatividade nasce da incompatibilidade com a realidade. Infância marcada por turbulência familiar.
[00:59:46] Mãe lê os meus livros e somos próximos. Troco viagens por almoços em família. Títulos de livros são difíceis de escolher. Ajuda colaborativa é importante.
[01:02:38] Escrever é como usar sapatos apertados.
LER A TRANSCRIÇÃO DO EPISÓDIOTRANSCRIÇÃO AUTOMÁTICA
Jorge Correia [00:00:00]:
♪ Ora vivam, bem-vindos ao Pergunta Simples, o vosso podcast sobre comunicação. Ler um livro é das coisas que mais prazer me dá. Acontece o mesmo convosco? Quando entramos num livro passamos a habitar num mundo novo. Um mundo construído entre as palavras do escritor e a nossa própria imaginação. Toda esta edição roda à volta das palavras, as escritas em livros, as escritas para serem ditas por atores no teatro, nos filmes ou em séries. E por isso mesmo, hoje é um dia especial. O convidado desta edição é um dos mais conhecidos e premiados escritores portugueses de nova geração. João Tordo, autor de 19 livros, entre romances, ensaios e policiais, e co-argumentista da série Rabo de peixe. Vamos ao programa? Vamos a isso. João Tordão confesse-se o leitor compulsivo e um documentado autor prolixo. Ele escreve em abundância e escreve em qualidade. Por isso não fiquei surpreendido quando me disse que a Folha em Branco não lhe causa nenhuma angústia. É um escritor matinal e um leitor nótivago. E deu para falar de tudo. Da maneira como escreveu Rabo de Peixe, como se preparou, como juntou ideias com outros co-autores e como desenhou uma das mais animadas e fantásticas cenas da série, o assalto à cabana do Oncle Joe, pelo Arruda, um embate entre Pepe Rapazotti e Albano Jerónimo, dois autores dentro das suas personagens. Uma oportunidade também hoje para falar de livros e de personagens que a miúde contrariam o autor. Das conversas com os leitores competidos especiais, para escrever mais sobre algum personagem, e o autor faz desavontade, continuando a saga dos personagens mais queridos. No caso de Rabo de Peixe, vem aí uma segunda temporada e João Tordo pode continuar a escrever para o reviver da história. Já agora, sabiam que quando se escreve uma série como Rabo de Peixe há uma espécie de sala de escritores? Isso mesmo, Uma sala onde os argumentistas trocam as ideias mais loucas e radicais e desenham as cenas escrevendo as falas dos atores. É isso mesmo que aconteceu no Rabo de Peixe 1 e que volta a acontecer para a segunda parte desta série. Viva João Tordo! Olá! Escritor, músico nas horas vagas, já vamos falar sobre isso, co-autor da série da moda, que é Rabo de Peixe. Eu quero começar por aqui, como é que se escreve rabo de peixe? Conta-me como é que foi o processo, tu pegaste nas tuas malas e foste para os Açores ou ficaste aqui em Lisboa a ler coisas sobre os Açores e depois é que foste para lá?
João Tordo [00:03:14]:
Olá, obrigado pelo convite. Não teve nada a ver com isso. Quer dizer, teria graça se tivesse sido assim, mas foi um convite do Augusto Fraga. Eu estava embranhado noutros projetos na altura e o Augusto ligou-me a dizer que gostava de falar comigo e eu já sabia que ele tinha vencido o concurso da Netflix e por isso havia três projetos que a Netflix tinha premiado, um deles era o Rápido Peixe e tive uma conversa com ele, assim, bastante simpática e depois o Augusto disse olha gostava que viesses trabalhar comigo para escrevermos a série. Acontecia que nós estávamos em pandemia e portanto foi um processo invulgar porque o que aconteceu foi que eu o Augusto e o Gonçalves e depois também com a ajuda de outras duas pessoas, o Francisco Lopes e o Fernando acabámos por nos juntar numa sala de escritores todos os dias durante cinco, creio que foram cinco meses de janeiro até janeiro, fevereiro, março, abril, maio. O que é que é uma sala de escritores? É uma sala de pessoas esquisitas, a pensar em coisas esquisitas. Basicamente é o que os americanos e os ingleses chamam de writer’s room. É uma coisa que eles fazem quando escrevem uma série de televisão. Uma série de televisão raramente é escrita por uma pessoa só. Tens alguns casos, assim, tens talvez o David Simon faça isso algumas vezes, escrever uma série sozinho. Aumenta a produtividade? Aumentam as ideias? É mais fácil? Aumentam as ideias, sim. Nós neste caso éramos três a escrever, eu, Augusto e Hugo e os outros dois estavam em módulos de ajudar e aconselhar e arrebatar ideias, etc. E é uma coisa muito nova cá, não se costuma trabalhar assim e por isso é que acho que o resultado depois também foi diferente do que é habitual, porque nós tínhamos ali esses cinco meses entre… Todas as manhãs reuníamos e depois eu e o Hugo começámos a escrever os guiões e depois de tudo ia passando uns pelos outros e os personagens, e essas ideias e esses acontecimentos. Então no mesmo sítio, fisicamente? Não, nós estávamos em pandemia, foi em 2021, janeiro de 2021, o segundo confinamento, o segundo grande confinamento, não te lembras que foi por três meses e meio ou quatro,
Jorge Correia [00:05:25]:
janeiro até abril. A nossa memória faz o favor de apagar essas coisinhas.
João Tordo [00:05:30]:
Foi bem duro, foi bem duro. E eu no zoomo todos os dias com esta malta E pronto, eu acho que o Augusto teve esse grande… Para além de ter um tipo extraordinariamente humilde e muito talentoso, soube rodear-se das pessoas certas. Ou seja, ao invés de fazer aquela coisa de eu vou fazer isto tudo sozinho, que é muitas vezes o que… Eu sou o grande realizador que tive uma grande ideia e ganhei um prémio e agora vou fazer o quê? Vou escrever também o argumento e vou não sei o quê. E ele pensou, ok, eu sou realizador, tenho estas competências, ele de facto é muito talentoso no que faz. Vocês já se conheciam? Não. Mas não sou escritor. E o que o Augusto fez foi ir buscar dois escritores de profissão, eu e o Hugo, andamos a fazer isto há décadas e, portanto, sou o auspício e a direcção do Augusto, que foi sempre muito voltada para eu quero fazer uma série que seja para toda a gente.
Jorge Correia [00:06:30]:
E isso é o que eu gosto. Eu também gosto de escrever livros que sejam para toda a gente. Que não seja uma coisa elitista, que seja neste caso um cinema de autor daqueles que o plano fica parado três quartos de hora e nós não conseguimos perceber exatamente o que é que aquele personagem está ali a fazer.
João Tordo [00:06:44]:
Sim, é engraçado que Estás a falar disso porque uma das grandes… Enfim, eu assisti à discussão da lei do cinema há uns anos, quando se discutiu aqui em Portugal que as plataformas tinham de começar a deixar parte dos seus lucros nos governos europeus, porque obviamente estavam todas a pagar impostos nos Estados Unidos e nós a pagarmos as plataformas aqui na Europa. Portanto, quando essa discussão aconteceu, eu fui ao Parlamento e estive lá com as outras pessoas e com os outros argumentistas e havia um realizador que defendia que todo esse dinheiro devia ir para o ICA porque o cinema português de qualquer maneira nunca passava da Badajoz e que a única maneira que o cinema tinha de chegar mais longe era ir aos festivais de cinema e ele estive do lado dos que só puseram isso, não? Acho que o sistema de júris do ICA tem a sua razão de ser. Eu acho que o cinema de autor ou outro tipo de cinema que se faça em Portugal. O ICA é uma entidade que avalia e que depois subsidia projetos de cinema e audiovisual? Sim, muito rapidamente, para não ser chato, isto tudo começou com a lei do fomento ao cinema, com o Marcelo Caetano, nos anos 70. E depois criou-se o sistema de júris que perdura até hoje. Ora, o sistema de júris tem todo o direito a existir, eu acho que todo o cinema deve ser apoiado. O que não pode acontecer é estar-se a favorecer, ao longo de muitas décadas, um determinado tipo de cinema, ao qual se resolveu chamar de cinema português, em detrimento de outras formas de expressão. No fundo, uma arte artística que são tão importantes quanto essa. E o que aconteceu é que
Jorge Correia [00:08:26]:
houve um divórcio muito grande entre o público e o cinema português por causa disto. Tem passado a ser uma coisa de minoria, seguramente obras de arte extraordinárias, mas que a maioria das pessoas se calhar nem entende, não é? Porque tem uma linguagem muito própria e tem um… Sim, tem uma linguagem
João Tordo [00:08:40]:
muito própria e acabou por criar esta decisão e este divórcio que eu não estou a dizer que o cinema português deva mudar, não é isso que eu estou a dizer? Está-se a advogar por uma diversidade. Tem que haver diversidade, porque este divórcio surge do facto de, do meu ponto de vista, eu enquanto escritor tenho liberdade para falar nisso porque eu não ganho a minha vida a fazer audiovisual eu ganho a minha vida a escrever livros. Graças a Deus que tenho essa liberdade e portanto escrevo audiovisual porque tenho prazer e tenho gosto nisso, mas… Tu és argumentista também, tu fazes coisas para… Eu também sou argumentista, mas a minha vida, a minha subsistência
Jorge Correia [00:09:19]:
vem dos livros. E tenho toda a liberdade… Que extraordinário ter essa liberdade também, não é? Ai, se calhar não me dão um subsídio porque se eu disser que isto… Eu não estou comprometido, percebes?
João Tordo [00:09:30]:
E por isso, a questão é, eu enquanto escritor percebi rapidamente, ao longo de alguns anos, que se eu não vender um determinado número de livros ou seja, se eu não tiver atenção a quem está do outro lado, ao público, eu não ganho a vida. Portanto, se eu… Vamos por hipótese, se eu vendo 10 mil livros em 2022, ou 20 mil livros, e em 2023 vendo 5 mil, pá, tipo, alguma coisa está mal.
Jorge Correia [00:09:56]:
É este livro que eles não gostaram? A escrita não se adaptou? Enfim, pode… Mas depois vem aquela conversa de, ah, mas vais adaptar daquilo que o público quer. Não, vou olhar para a realidade e perceber se será que eu fiz alguma coisa aqui que eu queria mudar. Por acaso, é sério, isso é uma pergunta. Como é que tu consegues, e já vamos voltar a rabo de peixe, porque eu quero explorar aqui um bocadinho a maneira como tu escreveste a série, como que tu foste coautor desta série. Como é que tu equilibras o equilíbrio, como é que tu equilibras entre aquilo que é a expectativa do teu público natural, que já leu 10 livros teus, os teus maiores fãs, e as tuas epifanias criativas? Quer dizer assim, Estou a lembrar-me, por exemplo, quando tu tinhas um conjunto de novelas de romances já escritos e um dia disseste, e agora vou fazer um policial. Como é que foi isso?
João Tordo [00:10:45]:
Mas essa é a questão, é que eu acho que ia chegar lá, que era este escrutínio que eu tenho enquanto escritor que eu ganho por livros vendidos. Não tenho com quaisquer subsídios, não tenho bolsas, não tenho apoios, portanto a minha vida se tornou rapidamente num diálogo entre mim e quem está do outro lado. Angustia ter
Jorge Correia [00:11:06]:
esse olhar para os números?
João Tordo [00:11:08]:
Não, acho que faz parte da vida de qualquer pessoa. O que aconteceu no cinema português foi que este escrutínio não está presente porque os subsídios são um fundo perdido. E portanto, eu enquanto realizador, quando vejo os números das pessoas que vão às salas ver cinema português, é assustador. Há filmes que fazem 40 espectadores. Há filmes que fazem… Há tipo 200 espectadores. Portanto, eu enquanto escritor não poderia nunca viver nessa realidade porque não ganharia a vida. Logo, não estou a dizer que esse tipo de cinema não deva existir porque acho que todo tipo de cinema tem todo o direito a existir e a ser subsidiado. O que eu acho é que importa pensar, importa refletir e importa ter uma consciência de que as coisas estão neste ponto. O que o Rabo de Peixes veio fazer, só para acabar essa linha de pensamento, veio mostrar que 1. O audiovisual português ultrapassa a Badajoz, mas em larga medida. E é bom. Claro, porque a série esteve e está nos tops de dezenas de países. Top 7 mundial. Sim. Que é uma
Jorge Correia [00:12:12]:
coisa… Surpreendeu-te
João Tordo [00:12:14]:
esse resultado? Surpreendeu-me imenso. Nós calculávamos que
Jorge Correia [00:12:19]:
fosse uma série de sucesso em Portugal. Faz sentido. Todos queremos ver uma série em Portugal, ainda por cima dos Açores, com autores portugueses, portanto iria conquistar-nos logo à cabeça? Mundialmente, não. Qual foi o clique? O que é que tu, agora que consegues olhar para trás e quando revês a série, o que é que te… Ok, tu estás muito próximo do objeto, não é? Mas o que é que tu achas que foi os cliques, as chamas, o fogacho que fez com que culturas tão diferentes da nossa se apaixonassem por rabo de peixe?
João Tordo [00:12:49]:
Eu acho que tem a ver com a empatia que aqueles personagens criam. Ou seja, aquele grupo de miúdos, o Eduardo, a Sílvia, o Carlinhos, o Rafael e depois o Uncle Joe também, noutra medida, têm uma empatia enorme connosco, enquanto… Porque lembra-te as histórias de miúdos, as histórias das aventuras, de ir atrás do tesouro perdido, que eram as histórias dos Goonies e daqueles filmes dos anos 80.
Jorge Correia [00:13:21]:
E eles têm uma vida desgraçada com ausência de oportunidades e subitamente ganham um euro a milhões e uma desgraça ao mesmo tempo. Tudo no mesmo pacote. Isso, como está tudo no mesmo pacote,
João Tordo [00:13:32]:
ao mesmo tempo de ser uma história de aventuras de miúdos de uma vila muito pobre a ganhar barão milhões e de repente tentar desafiar os deuses. E portanto, acho que toda a gente se identificou com essas personagens, com os seus dramas, com as suas dificuldades e com o rebuliço que a história às tantas cria, das coisas estarem constantemente a inverter-se e isso foi feito porque nós tivemos tempo para escrever e estávamos numa sala de escritores em que todos estávamos com o mesmo pensamento que era, nós queremos fazer para já algo que nós gostássemos de ver e depois algo que seja muito divertido e emocionante para as pessoas, para quem nos vai ver. Como é que é o processo lá dentro?
Jorge Correia [00:14:20]:
Há uma parte dessas salas de escritores que depois vocês conseguem fisicamente estar sentados em rabo de peixe?
João Tordo [00:14:26]:
Não, não, cá. Cá, sempre? Sim, então foi através do Zoom. Zoom,
Jorge Correia [00:14:30]:
e nunca tiveram… Tivemos, tivemos.
João Tordo [00:14:32]:
Depois quando as coisas abriram em Abril, quando o confinamento acabou, fomos aos Açores, todos juntos.
Jorge Correia [00:14:38]:
Como é que foi esse momento? Foi engraçado.
João Tordo [00:14:43]:
Fomos visitar os lugares todos que tínhamos imaginado. Pá, Casalegó, às Furnas, Ponta Delgada, fomos a vários sítios, andámos naquelas estradas meio selvagens e visitámos
Jorge Correia [00:15:01]:
os lugares todos. A estrada do farol e aquela ilha.
João Tordo [00:15:05]:
E quando fomos a Rabo de Peixe é que eu tive uma visão… Eu e o Hugo, e claro que o Augusto já a conhecia.
Jorge Correia [00:15:12]:
O Augusto é de lá, de lá da ilha. De lá da ilha.
João Tordo [00:15:15]:
E eu e o Hugo tivemos pela primeira vez a visão do que era Rabo de Peixe. De facto é uma vila extraordinariamente diferente de qualquer lugar onde eu tenha estado. Pelas cores, pela devolução ao Santo Cristo, os interiores das casas são exatamente como está na série, cheios de objetos e de parafernália e as pessoas são diferentes, são de facto… É uma cultura muito diferente e muito própria e foi importante irmos lá ver para depois
Jorge Correia [00:15:42]:
transportar isso para a escrita, não é? Tu és um ouvidor, tu foste ouvir as pessoas também quer dizer, tu estás lá, observas, lá está, a estrada das alusas, as casas As pessoas, como é que recebaram em ti? Como é que tu foste lá? Tu vais lá também apropriar-te da alma daquelas pessoas antes de… Calma, programa de alma? Não, programa de alma no sentido em que vais saber a música, vais saber o que é que elas dizem, o que é que as faz sonhar, o que é que as angustia, porque isso também lá está dentro desta série.
João Tordo [00:16:16]:
Sim, mas eu acho que as características particulares do Rápido Peixe são algo que nós tivemos em conta e que informaram a criação das personagens. Depois disso há um velho exemplo de como é que tu… Porque é que basicamente uma história funciona e outra não? O que é uma boa história? É isso que eu estava a dizer, é quando tu até podes estar a escrever sobre um marciano ou sobre um extraterrestre, por acaso o ET neste caso, que eu estava a pensar agora, e o que tu fazes é dar-lhe exatamente as mesmas emoções que nós. Porquê que o ET funciona enquanto história? É porque o ET no fundo é um miúdo de 12 anos, que tem exatamente as mesmas emoções. Ao mesmo tempo que o élite está cheio de medo, o ET está cheio de medo. Ao mesmo tempo que o élite está cheio de medo, o ET está cheio de medo. Ao mesmo tempo que o élite tem desejo de conhecer aquele desconhecido, o próprio ET tem exatamente os mesmos sentimentos. Portanto, eles são o espelho de outros. Ora, se tu consegues fazer isto com extraterrestres,
Jorge Correia [00:17:16]:
evidentemente consegues fazer com miúdos de rabo de peixe. É isso que gera essa empatia, no fundo, que nós estaremos a torcer por aquelas personagens para que eles se safem a fazer uma coisa, em princípio má, que é traficar droga. Para quem não conhece a história…
João Tordo [00:17:30]:
Sim, porque os motivos são mais nobres do que esses, eles querem escapar, é uma realidade muito dura. E a droga é a porta de saída daquilo. É apenas um objeto e não necessariamente
Jorge Correia [00:17:42]:
um… Sendo que, quando nós lemos os relatos históricos desse período de 2001 em que o veleiro se tem um problema no leme e as trifardes de droga aparecem na costa. Nós misturamos, lá está, desde essa população naif que sabe muito pouco, não está exposto, lá está, à ideia de droga, de experimentar esta droga e portanto com o efeito catastrófico que isto tem e por outro lado todos os negócios que depois se vão gerar à volta disso. Portanto é o fim da inocência daquela população ou tu achas que, ou a tua sensação é que aquela população já é muito pouco inocente com tudo aquilo que teve que superar?
João Tordo [00:18:21]:
Não sei responder porque eu não conhecia rabo de peixe antes da chegada daquela droga toda. O que eu sei dizer é que não há ali uma intenção de versimilhança, ou seja, de facto aquilo aconteceu, de facto a droga deu à costa em Rapa de Peixe e noutras vilas e de facto houve problemas sociais.
Jorge Correia [00:18:40]:
Leste coisas antes
João Tordo [00:18:42]:
do tempo de preparação do voo? Fizemos uma investigação enorme, só que depois percebemos que a história morria cedo, ou seja, o Quincy, que era o nome verdadeiro do tripulante daquele veleiro, de facto esteve preso na prisão de Ponta Delgada e de facto escapou saltando o muro. Mesmo? Sim, porque quando vais aos vassouros e quando vais na estrada, tu vês a prisão do teu lado direito e o muro é baixíssimo portanto qualquer pessoa com uma escada assalta aquele muro. E ele assalta o muro e tinha uma pessoa de moto à espera que o levou para a casa de um tipo qualquer lá perdido na ilha e ele escondeu-se lá no galinheiro e a polícia foi lá encontrar-lo. Mas a história morreu ali. Portanto, esta história toda… Não chega para contar o resto da história. Não chegava para fazer uma série de televisão. Portanto, o que nós fizemos foi, vamos dar vida a esta história, vamos pegar nestes miúdos de rabo de peixe e vamos ver o que é que acontece quando miúdos que vêm de uma situação pobre, que vêm de vidas difíceis, duras, têm de repente a lotaria nas suas mãos. E sendo que,
Jorge Correia [00:19:47]:
não sei se foi de propósito de irmiares tu, vocês brincam aos deuses, não é? E quando aquilo parece que está a correr francamente bem, acontece sempre uma desgraça. Acontece sempre alguma coisa que, agora que isto se ia resolver de vez, correu francamente mal. Há momentos em que isso acontece, em que eu tenho vontade de rir e não de chorar. Claro. E o que devia acontecer era dizer, ei, lá estás, gerando a empatia eu devia me sentir triste, mas me dá a vontade de rir.
João Tordo [00:20:19]:
Mas sabes que essa palavra, empatia, é uma palavra que hoje em dia se usa num contexto mais de eu gosto de si ou tenho afinidade por si. Lixamos a palavra? Lixamos, porque a origem da palavra que vem dos gregos e que está descrita em Aristóteles como a possibilidade da dramaturgia, ou seja, a possibilidade do espectador estar perante aquilo que é representado, na sua origem a palavra empatia é a possibilidade de estar perante as coisas que me causam repúdio ou aversão. É exatamente o oposto. E isso compreende-se na ficção, tu só consegues estar na ficção se também tiveres a capacidade de estar perante as coisas que não gostas, perante personagens que te são terríveis, como o Arruda, por exemplo. Ah, esse é maravilhoso, eu quero falar sobre isso. É, mas é uma pessoa terrível. É, nesse é o ponto. Mas agora deixa-me só fazer uma pergunta antes, que é,
Jorge Correia [00:21:10]:
tu tinhas escrito, vocês tinham escrito toda a série antes de começar a filmar ou durante o processo de filmagem que eu fuz-te ajustar. E eu estou a perguntar isto exatamente por causa do Arruda, porque o Arruda é o Rufia, o pequeno Rufia da… Rabo de Peixe. Rabo de Peixe, não é? A quem que no fundo diz… Bom, eu albano Jerónimo em primeiro lugar, para as pessoas ficarem já com isto na cabeça. Quando a droga aparece, no fundo quase se roga o direito de dizer, mas este é o meu negócio. Isto é meu, claro. Portanto, como é que foi escrever o Arruda?
João Tordo [00:21:49]:
Foi muito interessante, porque por já Arruda não é um nome assuriano. É um nome que nós dissemos, ok, nós não queremos que ele tenha um nome assuriano, vamos chamar-lhe Arruda. E depois foi muito interessante porque as reescritas foram… Eu fiz algumas, mas depois foi o Gonçalves que ficou no projeto mais algum tempo, porque eu tinha outro projeto e, portanto, quando acabou a sala de escrituras e tínhamos os guiões mais ou menos fechados, ou quase mesmo fechados. Depois houve uma fase posterior de reescritas. A Ruda, para mim, foi das personagens mais interessantes porque o Eduardo precisava de um antagonista que não fosse apenas a máfia italiana nem que fosse o Monti, que é o assassino, a solda italiana que a máfia manda para rescatar a droga. Precisavas de um verdadeiro opositor? Precisávamos de alguém real, de rabo de pães, que fosse o antagonista e o Arruda é excelente nesse aspecto. Pode ser quase um irmão gêmeo ao contrário? Não, Eu diria que o Arruda é um bocado… Por exemplo, a personagem da Sílvia, que é a filha dele, é o espelho daquilo… Ela… A Arruda é a imagem daquilo em que a Sílvia se podia tornar caso a sua vida decorresse mal. E portanto, aí está uma das boas coisas da série, é que nenhuma personagem ali é boa nem má.
Jorge Correia [00:23:07]:
Há sempre uma redenção ou uma catástrofe. São todos contextos
João Tordo [00:23:10]:
difíceis e portanto o Eduardo às vezes faz as coisas erradas pelas razões certas às vezes faz as coisas certas pelas razões erradas e isso é que nos cria empatia, porque nós não… Enfim, ainda ontem, por exemplo, eu estava aqui a ver um documentário acerca do Stan Lee, que foi o criador do Marvel Comics e do Homem-Aranha, etc. E ele especificamente dizia que o Homem-Aranha era a personagem que ele mais gostava porque era uma personagem que estava no sítio errado à hora errada. Ou seja, ele não quer ser um super-herói, é depois mordido por uma aranha radioactiva, tem uma tia que está sempre doente e que ele tem que cuidar acima de tudo. É um acidente. Exato, é um acidente. Ele de repente é uma personagem que é ao mesmo tempo um herói e um anti-herói. É ao mesmo tempo um miúdo, uma espécie de adolescente amargurado e alguém que tem demasiado poder para a responsabilidade que sabe assumir e é isso que nós fizemos.
Jorge Correia [00:24:12]:
Tu falas-me disto e eu estou a lembrar-me que da maneira como eu vi a série do Rabo de Peixe, eu sentia muito como é que um ambiente pode gerar uma profunda desigualdade porque quando nós estamos a ver aquilo, dizemos, são retratadas na série, mas aquelas pessoas naquele contexto com aquela dificuldade toda, para chegar ao emprego de sonho ou à vida de sonho tem que pedalar muito mais do que os privilegiados que estão aqui à nossa volta em Lisboa com as mesmas idades. E mais oportunidades?
João Tordo [00:24:49]:
Sim, eu acho que é uma desigualdade enorme. Eu acho que muitas das pessoas que vivem nessas situações desistem à partida, não é? Porque percebem que o caminho é impossível ou que as oportunidades lhes estão vedadas. E eu tenho empatia. Simpatia? Não, acho que simpatia é um bocadinho triste de ter, mas acho que… Compaixão podemos usar. Compaixão, se calhar, para essa falta de oportunidades, sendo que nas nossas próprias vidas, nós também vamos criando as nossas próprias avenidas. Eu podia não ter sido escritor. Eu tinha tudo para não ser um tipo com sucesso nesta vida. Quer dizer, o meu sucesso é muito relativo, obviamente, comparado com as pessoas que têm verdadeiro sucesso. Então, se tivesses
Jorge Correia [00:25:35]:
um emprego chato, serias o quê?
João Tordo [00:25:38]:
Não sei, eu acho que dadas as circunstâncias da minha personalidade, que foi sempre um miúdo e um adolescente extremamente tímido, com muita dificuldade na expressão, para tipo oral, por exemplo, com muita dificuldade em encarar os outros nos olhos, sempre metido comigo próprio, sempre a ler e a tentar escrever a um canto. Eu tinha uma natureza que em princípio não seria para isto. E portanto, eu fico muito surpreendido por chegar aqui a esta idade e por ter conseguido fazer uma série de coisas que aparentemente na minha infância e na minha adolescência ninguém adivinharia que eu poderia fazer.
Jorge Correia [00:26:20]:
Estão a gostar do Pergunta Simples? Estão a gostar deste episódio? Sabia que um gesto seu me pode ajudar a encontrar e convencer novos e bons comunicadores para gravar um programa? Que gesto é esse? Subscrever. Na página perguntasimples.com tem lá toda a informação de como pode subscrever. Pode ser por e-mail, mas pode ser, ainda mais fácil, subscrevendo no seu telemóvel através de aplicações gratuitas como o Spotify, o Apple ou o Google Podcasts. Assim, cada vez que houver um novo episódio, ele aparece de forma mágica no seu telefone. É a melhor forma de escutar o Pergunta Simples. Quando é que os deuses decidiram que tu ias começar a escrever? Ou quando é que tu percebeste?
João Tordo [00:27:05]:
Eu acho que foi desde os 6, 7 anos que eu me tornei obcecado pelos livros. Mas era mesmo obcecado, não era uma coisa saudável. Pela leitura? Pelos livros, pelas histórias, pelas personagens. Eu acho que devo ter lido o primeiro livro do Sherlock Holmes para aí de 50 vezes. E o Estudo em Vermelho. Devo ter lido o Julio Verne para aí de 30. Eu andava ali à volta de aquilo à volta à volta à volta e depois quando descobri o Dostoyevsky e os russos e aquilo para mim o crime e castigo é um thriller, as pessoas falam de crime e castigo e, oh, alta literatura não, aquilo é um thriller, é um thriller sobre um miúdo que está perdido nesta vida e que mata duas mulheres de uma maneira brutal e depois é perseguido por causa disso, e com toda a razão, portanto aquilo é um trailer e eu sempre gostei desse tipo de ficção que nos leva ao limite, que nos coloca on the edge, como se diz, não é? E por isso eu percebi muito rapidamente que a minha vida era aquilo. Mas depois, como tinha medo, comecei a divergir para outros lados. Tentei ser jornalista, coisa que eu não tinha jeito nenhum. Estudei filmes… Mas faz-te aborreciente, não? Não, é que eu não tinha jeito, percebes? Eu não tinha agenda, andava sempre desencontrado com as pessoas, tinha medo de estar a ligar e a chatear os outros. Opa, percebes? Um jornalista não pode ter estas características. Um jornalista chateia pessoas, faz perguntas incómodas. Exato, e eu odiava, percebes? Eu percebi, epá, tu vas chatear a pessoa. Coitada da pessoa. E portanto foi nessa altura que eu fiz o interregno na ficção dos meus 20, 20 até hoje, 25, 26 e depois percebi, pá, não, eu tenho que voltar a escrever ficção
Jorge Correia [00:28:44]:
porque isto não é para mim. E quando escreveste o primeiro livro, quando publicas o primeiro livro, qual foi a sensação? Foi de…
João Tordo [00:28:54]:
Foi de que não tinha feito quase nada. Que faltava um caminho enorme. Portanto a sensação foi tipo, ok, isto já está feito, já ultrapassei este percalço. O teu primeiro livro é um percalço? É um percalço, é. Porque eu acho que o meu primeiro livro nem sequer é de um romance, é um conjunto de quatro novelas que eu acho que tem alguma densidade emocional, mas que estão longe daquilo que eu depois consegui fazer mais tarde. E consegues releer?
Jorge Correia [00:29:18]:
Não, não. És muito crítico de ti próprio? Ah pá, não quer saber. Não acho que não tenho nada que estar a releer os meus livros. Seria uma coisa completamente narcisíca. Mas é curioso, quer dizer, tu dizes isto é um percalço, é tipo um acidente, mas assim sem esse primeiro acidente não havia o segundo acidente, o terceiro e o quarto e não podíamos usufruir hoje dos maravilhosos livros que tu escreves. Obrigado pela elogio, mas a verdade é que… Não só que eu digo, olha para o público, certo? Tu és um escritor acarinhado pelo público, as pessoas podiam gostar da tua escrita, comprar os teus livros mas não só, eles gostam de ti como autor, como pessoa, gostam de… Acompanham-te, intervenham… O público fala muito contigo, vem até contigo?
João Tordo [00:30:02]:
Ora Jorge, a questão é que eu durante os últimos 20 anos eu não fiz mais nada senão escrever livros e ir ter com o público. Foi o que eu fiz. Eu não sei quantas centenas de sessões eu fiz desde 2004 mas não sei se foram centenas ou se foram milhares. Tu vais a sítios, vais a fóruns, vais falar com miúdos, vais falar com públicos. Vou a bibliotecas públicas, a escolas, a conferências, a debates, a palestras, a tudo e, portanto, durante os últimos 20 anos essa construção foi feita também porque eu estava muito interessado em perceber o que é que estava do outro lado o que é que as pessoas gostam de ler, porquê é que gostam de ler e essas perguntas todas que eu fui colocando foram encontrando respostas O que é que eles te dizem? O que é que os teus públicos te dizem? Os meus leitores já me disseram de tudo desde que eu não devia ter matado uma personagem, até que nos últimos tempos a coisa mais aparente é, então como é que vai ser a segunda temporada do Rapão? Não sei. É uma pergunta?
Jorge Correia [00:31:01]:
Tu vais escrever? Vou, vou.
João Tordo [00:31:05]:
E essa eu não sei, mas a pergunta antes dessa era… Eu comecei a escrever policiais, como tu disseste, há uns anos. Porque deixei-me de preconceitos, porque eu adoro policiais. Adoro. Adoro. Eu gosto de ler. E portanto pensei, se eu gosto tanto disso, porquê não é de fazer, já que a minha profissão é escrever? E foi um salto no escuro, porque eu não sabia como é que o público ia reagir. Podia ter sido, este caso não tem jeito nenhum para isso. Mas a verdade é que o primeiro policial foi um sucesso enorme. Depois os outros dois que se seguiram, o Águas Passadas e o Oceano de Desperdão, trouxeram-me dois personagens que é a pergunta que o público mais vezes me faz, quando é que volta a pilar? Quando é que volta a pilar? Quando é que volta a pilar? E tu voltaste? Voltei no Oceano de Desperdão e agora vou ter que voltar outra vez porque eu disse a mim próprio, eu vou fazer isto como o Conan Doyle fazia com o Sherlock Holmes, que era… Ele publicava o Sherlock Holmes em pequenos fascículos que saiam com o Times e depois o público dava a resposta. Dizia, gostámos desta história, não gostámos desta, o Sherlock Holmes está um bocado parvo, o Dr. Austin está a falar muito. Uma coisa interativa. Interativa. E eu disse, e eu com os policiais pensei, eu quero fazer o mesmo. Se estas personagens, a Pilar e o Cícero, não funcionarem,
Jorge Correia [00:32:11]:
eu não vou insistir nelas. Eu quero… Mas se funcionarem eu vou, aqui, no fundo, reescrevê-las e repensá-las.
João Tordo [00:32:18]:
Não, e vou continuá-las. Portanto, agora tenho um terceiro volume para escrever e isso é que me deixa contente, muito mais do que a satisfação pessoal de… Ah, sou um escritor conhecido, ou que ganhei uns prêmios, ou que não sei o quê, o que me dá mesmo alegria é quando os leitores dizem eu quero ler mais destas pessoas. Eu estou a gostar disto. Sim, e isso é que me dá a verdadeira alegria, porque eu sei que isto é quase contra mim dizer isto, porque no meio literário português nós tendemos a ser muito mais nobras e muito mais assim, mais… Não sei. Elitista? Não, elitistas não, mas acho que tendemos a ser mais… Eu sou escritor e portanto eu tenho a minha… Eu é que sei. O chefe é que sabe. Sim, eu sou um autor e portanto eu não tenho que dar resposta. E no meu caso eu sou precisamente o contrário. Eu descobri que quanto mais eu percebo o que é que um leitor gosta nos meus livros, mais eu consigo ter afinidade com aquilo que estou a escrever. E vais escrever para eles. Olha,
Jorge Correia [00:33:21]:
este cara, o telespectador do Rabo de Peixe quer pedir-te que faz favor de ressuscitar o Arruda. Porque…
João Tordo [00:33:34]:
Eu tenho…
Jorge Correia [00:33:37]:
O Álvaro Jones é… Eu tenho uma ideia para isso, mas não sei se vai ser. Ah, lá está! Porque depois entras lá no concílio dos escritores e aquilo tem… As ideias
João Tordo [00:33:46]:
são todas… Escrutinadas! Sujeitas a levarem um tiro. Do Hugo ou do Augusto. E lhes dizerem, Não, estás parvo. Isto não pode ser. Pois, na próxima segunda temos uma reunião e eu vou propor. Sim,
Jorge Correia [00:34:01]:
o público, uma pessoa do público quer que o Arruda ressuscite porque como é que é veres as tuas palavras a serem reimaginadas por um albano o Jerónimo ou pelo PP, que também está na série.
João Tordo [00:34:21]:
Eu acho que de todas as personagens da série, o Uncle Joe é o meu objeto de estimação. É o teu favorito? É, porque, sabes porquê? Porque quando estávamos na primeira sala dos escritores a inventar o rabo de peixe, eu às tantas, creio que lancei uma ideia que foi, pai, eu acho que o Eduardo devia ter alguém que estivesse fora de rabo de peixe e que tivesse com ele uma ligação emocional, pá, tipo antiga, e depois chegámos ao Uncle Joe. É o tio da América que imigrou com o inquérito miúdo para os Estados Unidos. Exato, viveu lá a vida toda e depois é deportado porque quando uma pessoa de uma nacionalidade que não é americana na sua origem comete um crime,
Jorge Correia [00:35:01]:
é devolvido ao seu país natal. O que aconteceu nos Açores e há um maravilhoso promenor de linguagem que é a mistura do português e do inglês em contínuo, que é mágico
João Tordo [00:35:14]:
neste Uncle Joe. E o Uncle Joe era a minha personagem de estimação e portanto eu às tentas pedi ao Augusto e ao Hugo que me fizessem o favor de me deixar escrever a base daquele sexto episódio que eu adoro em que eles vão ter com o Uncle Joe à sua cabana, depois aquilo foi… Eu fiz a base, depois o Hugo reescreveu, depois o Augusto também, depois eu tornei a reescrever e…
Jorge Correia [00:35:36]:
Esqueci de me fazer uma pergunta. Não, a minha pergunta tem… Eu já estou no Uncle Joe, eu agora quero saber tudo. Então, como é que tu sentes, viste, as palavras que tu escreveste Ah, sim, sim. O que tu imaginaste, na interpretação do ator, porque depois o ator e ele próprio também reescreve o texto de alguma maneira.
João Tordo [00:35:54]:
Agora acho que correndo o risco de ser injusto com algumas coisas que fiz no passado, eu acho que só recentemente é que eu comecei a gostar disso. Talvez tenha começado a gostar no País Irmão, que foi realizado pelo Sérgio Gracián, depois gostei também muito até que a vida no Spar, que foi realizado pelo Manel Poreza, e aí eu comecei a gostar das minhas palavras ditas pelos autores. Mas em Rápido Peixe, de facto, gostei muito. Achei que superou em todos os níveis a minha expectativa e tendo o P.B. Rapazotti, que é um autor super versátil e de quem eu gosto muito a fazer Dunkelgeier, eu acho que ele está perfeito. Ele está mesmo perfeito naquele tempo. Tu escreveste a pensar nele ou não? Não, nós não sabíamos nada. Quando escrevemos não tínhamos um único ator. Foi tudo… E Talvez por isso também a série tenha resultado tão bem, porque nós não estávamos ligados a atores necessariamente, embora nesta segunda temporada já vamos estar com eles na cabeça, o que pode ser uma experiência também boa, mas diferente. Mas na primeira temporada a liberdade que o Augusto nos deu de dizer, pá, inventem, tenham, deem largas à vossa imaginação. Aliás, quando escrevemos a primeira temporada, o Uncle Joe não vivia num sítio afastado do mar, a cabana dele era mesmo junto à água, na Fageia de Santo Cristo, na ilha de São Jorge. Mas depois por questões de produção e de reescrita acabou por se deixar O Uncle Joe na… Ai, agora esqueci-me do nome da ilha. Não importa. Era
Jorge Correia [00:37:36]:
uma cabana. Só Miguel. Pensei que fosse outra ilha, nem sequer pensei que eles filmaram em várias ilhas. Porque na versão original
João Tordo [00:37:45]:
Ele de facto vivia ali na fazenda de São Jorge e depois as coisas foram-se alterando, mas o Uncle Joe continua o mesmo. Essa personagem eu acho que é muito delicada e ao mesmo tempo muito importante para o próprio Eduardo, porque é o amparo emocional dele, que ele já não tem com o pai, que ele já não tem com a sua mãe, porque a mãe morreu, e o Uncle Joe é aquele que o vai amparar quando ele mais precisa que lhe digam a Ked, como ele chama Ked, tem atenção que tu tens duas estradas, uma é voltas para rabo de peixe e tornas-te um peixe pequeno, num sentido pequeno, ou então abres este caminho para a nova vida e arriscas ser preso e ser morto. Eu acho que esse era aquilo que o Eduardo precisava de ouvir.
Jorge Correia [00:38:38]:
É uma personagem que empurra a ação? Que pega, neste caso, no autor principal, no personagem principal e diz, vai! Sim, eu acho que o Uncle Joe é fundamental naquela fase
João Tordo [00:38:50]:
da história, porque ele aparece pela primeira vez no quarto episódio, muito brevemente, depois no quinto, no final, e o sexto é quase todo dele, e no sétimo também. Mas ele dá aquele empurrão que o Eduardo precisa para estar convencido daquilo que ele já sabe que tem que fazer. Mas ainda está na dúvida. Quando eles enterram a Ruda, ele pergunta ao Uncle Joe, pá, mas o que é que eu faço? Então se eu fico aqui, acabo como tu? Se eu saio daqui, acabo como tu? Se eu fico aqui, acabo como o pai dele? É um dilema. Como o meu pai. E o Uncle Joe dá-lhe a resposta.
Jorge Correia [00:39:24]:
Tu assististe às filmagens?
João Tordo [00:39:26]:
Não, eu não estava cá quando estava em viagem e portanto só comecei a ver alguma coisa quando já estava tudo feito, eu não assisti.
Jorge Correia [00:39:36]:
E tiveste uma sensação de quê? De surpresa?
João Tordo [00:39:41]:
Olha, para te ser sincero eu não estava à espera que fosse tão bom. Eu sabia que o Augusto era um grande realizador e sabia que os atores eram ótimos mas eu próprio fiquei surpreendido com a qualidade da série. Talvez não por desconfiar de coisa nenhuma mas porque não estava habituado a ver uma série portuguesa com tão bom aspecto. Isso, com tão boa luz e com tão boa interpretação. Tem ótimo aspecto a série, e uma das coisas que me surpreendeu logo foi sabes o pensamento que me veio que é muito pernicioso foi isto não parece uma série portuguesa.
Jorge Correia [00:40:17]:
Que é péssima.
João Tordo [00:40:19]:
Não, isso é um português a pensar. Exatamente. Portanto, eu acho que esta série abre portas para nós começarmos a pensar de uma maneira diferente e para inverter um bocadinho este paradigma de que nós somos portugueses, somos pequeninos, esta língua nossa é um bocado estranha, não chega longe e tal. Não é verdade. Passamos de bradejós, não é? Seguramente, claro que sim. Olha, o escritor João Torto anda a ler o quê?
Jorge Correia [00:40:45]:
O que é que te interessa agora, por estes tempos?
João Tordo [00:40:47]:
Olha,
Jorge Correia [00:40:48]:
ando a ler… Saltas de livro em livro? Salto, salto. Estou quase
João Tordo [00:40:52]:
a terminar um romance policial do Joel Dicker que se chama O Caso Alaska Sanders, que é muito divertido, não é fascinante, mas eu escrevo de uma maneira muito divertida e é compulsiva a leitura. Depois tenho estado a ler um ensaio do Alan de Botton que se chama… Esqueci. Já lá vamos chegar? Não, Chama-se Essays on Love, que é muito engraçado, tem uma perspectiva muito estoica e muito diferente sobre aquilo que nós consideramos que é o amor. E estava a ler outra coisa que… Estava a ler o quê? Ah, e ontem acabei de ler o livro da Madalena Sá-Fernandes que se chama Leme. Que é muito bonito. E vais… Lees um boletinho agora daqui e depois guardas, vais ler outro ou tens alguma disciplina? Ou lees coisas ao mesmo tempo? Leio ao mesmo tempo e leio sobretudo à noite. Eu há dez anos que não saio à noite. E quando vou jantar fora, são ocasiões especiais com amigos e tal, outro dia fui jantar fora, não sei o quê. Ou quando vou ao coro, mas de resto as minhas noites são para ler. Isso é uma vida de ermita? Não, eu acho que é uma vida de quem faz a sua vida à escrita, não é? Portanto, em vez de perder o meu tempo, que eu Acho ótimo que as pessoas
Jorge Correia [00:42:17]:
saiam e… Socializar, tu preferes escrever? Sim, socializar. Como é que são as tuas rotinas? Eu gosto de socializar durante o dia e depois andar a clarear. Onda mais consigo. Como é que são as tuas rotinas como escritor?
João Tordo [00:42:27]:
São de manhã. Por isso é que também eu mudei de sede, porque eu começo a escrever muito cedo, começo a escrever 8h30, 9h, já estou ao computador e começo a pensar, e são essas horas que eu penso melhor na minha vida e penso melhor na escrita. E depois à tarde normalmente faço reescritas, ou vou fazer coisas burocráticas, que às vezes tem que se fazer, Ou vou à piscina também, eu gosto muito de natação. E depois à noite leio. Ou às vezes, quando estou bem virado vejo uma série de televisão, mas gosto mais de ler. E quando tu estás a escrever,
Jorge Correia [00:42:58]:
isso é um exercício que dura… Em que horas? 3 horas? 4 horas?
João Tordo [00:43:03]:
Às vezes pode durar 20 minutos, por exemplo, se eu tiver um bom dia de escrita, 20 minutos não, mas pode durar 40 minutos e eu tenho um bom dia de escrita e naqueles 40 minutos eu faço o que tenho para fazer, só que esses 40 minutos são intensos e depois fica ali à volta do que fiz durante algum tempo e às vezes demora 5 horas. Há um aquecimento mental?
Jorge Correia [00:43:28]:
Ou não? Ou tu tens isto, a tua ideia como um emprego qualquer? Tu chegas, sentas-te, eu sou pago para escrever e então vou escrever.
João Tordo [00:43:39]:
Não, eu não sou pago para escrever, quer dizer, eu não sou pago para escrever, eu publico livros aliás, a Penguin publica os meus livros e eu recebo uma porcentagem por cada livro vendido. Portanto, eu não sou o Paco para escrever, eu tenho a iniciativa de escrever e depois a partir daí recolho aquilo que
Jorge Correia [00:43:59]:
qualquer pessoa na sua profissão recolhe. E o que é que pode fazer a diferença entre a escrita ser altamente produtiva de 40 minutos ou teres que andar ali a marulhar
João Tordo [00:44:11]:
durante 5 horas? Às vezes depois tem a ver com os dias, não é? O que é que faz a diferença entre uma pessoa ter um dia bom e um dia mau? Às vezes uma pessoa acorda com o pé esquerdo e… O que é que é um dia bom? Um dia bom é um dia em que eu escrevo aquilo que tenho para escrever, tenho o mínimo de atrito possível com as outras pessoas, consigo ir fazer alguma coisa que me diverte nesse dia, tipo ir à natação, onde eu fui cortar o cabelo com o meu sobrinho, com um dos meus sobrinhos, e portanto vim para casa e depois a coisa foi… E dei mal lá à noite, até às dez e meia, e depois fiquei a ler. E depois foi um dia tranquilo. Um dia mau, é quando eu acordo, a escrita não corre bem, depois começo a entrar em conflito com as pessoas e lá em torno eu me envolto. O que é que te jateia nas pessoas? Eu tenho uma cabeça obsessiva ou compulsiva, portanto a minha personalidade é assim e eu já há muito tempo me habituei a isso. Quando não estou a escrever ou quando a escrita não está a correr bem, a minha obsessão volta-se para coisas que não têm interesse nenhum. Portanto, tens mau feitiço, mudas a tua energia para… Posso ter mau feitiço, mas também me arrependo logo de ter mau feitiço. Arrependo-me, sim, eu às vezes quando me salto da tampa consigo ser um tipo extraordinariamente… Extraordinariamente agressivo. Não quer dizer, não agressivo, mas consigo ser pouco simpático. Aborrecido. E eu não gosto disso, sabes? E portanto às vezes quando… Acho que durante o ano vou tentar pedir desculpa aqui e ali porque também me ensinaram que assim que o mal está feito, agora podes também fazer a reparação e como normalmente eu me chateio com pessoas que são próximas, tudo será podoado,
Jorge Correia [00:45:50]:
se as pessoas conseguirem… E tu já tens isto porque não as compreendes, porque elas te estão a exigir demasiado, o que é que… Consegues encontrar Qual é o motor dessa tua neura?
João Tordo [00:46:03]:
Não é neura, eu acho que tem a ver com o facto de nesta vida todos nós vamos tentando conhecer a fronteira entre as coisas que eu tenho que aceitar e as coisas que eu posso modificar. E quando me sinto acusado, quando sinto que estou numa situação injusta, quando sinto que do outro lado há alguém que procedeu de uma forma que eu achei menos apetecível. Reajo. Ou menos respeitosa, reajo. Tento não reagir tanto hoje em dia, tento dar aquele período de pausa, deixa passar um dia e depois logo dizes o que tens a dizer mas há alturas nesta vida em que a pessoa tem que traçar fronteiras e tem que traçar limites e isso não é fácil de fazer porque a minha personalidade diz-me, não faças nada, está-me azer calado, deixa a coisa passar porque assim não te metes em conflitos e não te metes em problemas, mas os conflitos fazem parte da vida não há maneira de os evitar e normalmente temos conflitos com as pessoas que nos são mais próximas até porque são essas que mais gostamos, com a nossa família, com os nossos amigos, com as pessoas com quem trabalhamos. Vou-te dar um exemplo claro. Com a amiga da diretora, com a Clara Capitão, nós gostamos imenso um do outro, já trabalhamos juntos há 10 anos e de vez em quando temos conflitos e zangamos-nos e ficamos assim uns dias de neura e depois pedimos desculpa ou normalmente eu peço desculpa ou a Clara também pede e portanto nós vamos tendo conflitos que nos ajudam a crescer. A questão é que as crianças sabem isto quase instintivamente, os putos estão sempre zangados, zangam-se com eles, zangam-se com aquilo, e isso é uma forma de eles poderem amadurecer. Se tu chegas a uma certa altura da tua vida e começas a evitar o conflito e começas a tentar agradar a toda a gente, de certo modo paras o teu crescimento pessoal. E ficas tu com as novas negras. Ficas tu com as novas negras, ficas cheio de ressentimentos que podes tentar suterra-los, mas mais cedo ou mais tarde eles vão de onde viram de cima. E há um livro que eu releio muitas vezes de um tipo chamado Scott Peck, que escreveu um livro chamado O Caminho Menos Percorrido e ele diz que o caminho menos percorrido é o caminho das pessoas que são capazes de aceitar o sofrimento que está em direita à realidade e que não só aceitam o sofrimento como o tentam assimilar e como tentam perceber. Mas o que é que eu posso aprender com isso? Em vez de evitar a questão… E portanto, eu como todos os seres humanos tenho a minha cota parte de ira e de sangue e de indignação etc. E a melhor coisa a fazer é ter de lidar com ela e transformá-la lentamente em tristeza e depois em aceitação.
Jorge Correia [00:48:49]:
Olha, e ao contrário? As pessoas inspiradoras que te rodeiam, o que é que fazem em ti? Ou o que é que te oferecem?
João Tordo [00:48:59]:
Oferecem-me… Eu acho que me oferecem a capacidade de perceber
Jorge Correia [00:49:06]:
que eu sou só mais um. As pessoas que… A minha sensação é que quando nós encontramos alguém que nos inspira ou de quem nós gostamos é que quase por osmose nos transforma em melhores pessoas do que nós somos na vida real?
João Tordo [00:49:23]:
Falar de algo. Olha, por exemplo, agora que estamos a falar do rabo de peixe, por exemplo, Augusto Fraga, que é um… Realizador. Sim, realizador. É uma pessoa que tem uma capacidade de te fazer sentir-se para já bem acerca daquilo que fazes e depois de te trazer para cima no sentido em que muitas vezes durante a escrita da primeira temporada Nós tivemos períodos altos e períodos baixos. Tivemos períodos em que andámos para ali semanas… Em que não saem? Estagnados, mesmo. De repente as ideias começam a desaparecer, de repente que começas a ficar cansado. E o cansaço é um grande inimigo da criatividade, talvez o maior inimigo da criatividade. Nessas alturas faz o que? Paras? O Augusto soube muito bem gerir isso. Perceber que os meus escritores estão aqui num estado de exaustão e portanto vamos lá dar aqui uns dias de folga, se calhar para a semana reencontramos, etc. E nunca deixou de conseguir equilíbrio. Acho que há pessoas nesta vida que são naturalmente desequilibradas, eu sou uma delas, e portanto tendencialmente busco pessoas que tenham esse equilíbrio e que me possam ajudar nisso. E portanto eu acho que as pessoas… Acho que os grandes, as pessoas que são grandes são aquelas que têm maior capacidade de assimilar o seu próprio sofrimento e o sofrimento alheio também, e fazer disso algo de construtivo. Pronto, depois há as pessoas que são menos construtivas, que são mais destrutivas e essas talvez não interesse tanto estar com elas.
Jorge Correia [00:50:57]:
Como é que tu lidas com… Agora estávamos a falar nesse período de passar, numa altura em que não há ideias, em que elas não floem, em que elas não aparecem. A tua relação com a folha em branco, como é que é? Nesses momentos em que não aparece logo aquela primeira frase que clavra o terreno.
João Tordo [00:51:17]:
Eu não tenho uma relação muito grande com a folha em branco porque para mim quando… Ela desaparece, rapidamente. Quando eu não tenho nada para fazer, quando eu não sinto que estou virado para ali que não é só uma questão… Escrever não é uma questão de eu ter prazer ou de me apetecer escrever. Eu escrevo profissionalmente, portanto mesmo quando estou a escrever um livro não tento não deixar passar nenhum dia, sem pelo menos ir às páginas ver o que é que está a acontecer. Quando há folha em branco é quando eu estou mesmo exaurido e portanto não há nada para fazer e isso só me aconteceu duas vezes na vida. Foi depois do prémio Saramago, durante algum tempo, e depois de… E durante a pandemia, no segundo confinamento… Não, desculpa, no primeiro confinamento de maio de 2020 até maio de 2021, eu não escrevi nada. Era um período difícil para nos concentrarmos, não é? Sim, tive umas reuniões de rabo de peixe, mas do ponto de vista de livros não fiz nada, porque percebi que não estava capaz. Portanto, foi… A minha relação com a Folha Branca é… Eu nem sequer vou lá. Quando vou lá já sei que é para fazer alguma coisa. Eu tenho qualquer coisa para escrever, logo vou lá. Estás a escrever um livro, dois livros, onde é que… Já nem sei o que é que eu estou a fazer. Não, estou a reescrever um romance que já está escrito há 3 anos
Jorge Correia [00:52:37]:
desde maio de 2020, precisamente. Que ficou na gaveta à espera, no ovinho. Ficou
João Tordo [00:52:42]:
porque havia outras coisas que estavam à frente. Havia este ensaio que saiu agora, havia o policial, havia o romance que saiu ano passado que saiu em 2021, que era o Naufrágio, portanto havia uma série de coisas que já estavam planeadas à frente e este romance ficou na gaveta, sendo que é um dos romances que eu mais gosto, mas tive de o deixar tranquilo durante três anos. E depois repagar e reescrever? E reescrever tudo, sim, que é o que estou a fazer agora. Vai sair em outubro, novembro.
Jorge Correia [00:53:10]:
Tu comandas as personagens ou as personagens comandam-te a ti nos livros? As personagens comandam-me. Sim, e
João Tordo [00:53:18]:
um exemplo bastante claro disso é a Pilar, por exemplo, que é a protagonista dos Policiais. Ela é uma mulher muito frágil e muito corajosa, é vulnerável e ao mesmo tempo é muito forte e é insensata, além de toda a razoabilidade. E a Pilar está sempre a fazer coisas que eu gostava que ela não fizesse. Está sempre
Jorge Correia [00:53:38]:
a contrariar-se.
João Tordo [00:53:39]:
Está sempre a contrariar-se. A colocar-se em situações que eu acho que são terríveis para ela e, por exemplo, quando acabei de escrever o Águas Passadas eu achava que no final a Pilar ia tomar um caminho que para mim era óbvio desde o princípio. E quando cheguei a esse momento pensei, ela não pode fazer isto porque isto é contra ela própria. Então acaba numa situação de novo muito difícil e eu quase que fiquei… E depois quando escrevi o Senso de Perdão aconteceu a mesma coisa, por isso eu diria que os meus planos vão sendo gorados pela obris, pela audácia e o atrevimento das personagens em gorar, em defraudar tudo aquilo que eu espero para elas. Como é que se escuta um personagem? Tenta dormir e não pensar num assunto enquanto estás longe da página. E uma pessoa verá que durante o sono, durante os tempos mortos, durante a altura em que está a fazer outra coisa qualquer, há uma parte secreta do cérebro de um escritor que continua a carburar. E, por exemplo, se à segunda-feira eu tenho um plano para a terça-feira, depois quando chega a terça-feira de manhã eu percebo que, afinal, isto não é nada assim, afinal houve aqui outra história que quer acontecer. E Por isso é que eu acho que muito da escrita é feito em silêncio, é feito quando não se está a escrever é feito quando não estamos palivirados, quando estamos a fazer outras coisas. De onde é que vem a tua criatividade? De onde é que vem? Eu acho que vem da minha Incompatibilidade com a realidade, basicamente. É fácil de explicar. Eu tenho incompatibilidade, muitas incompatibilidades com a vida como ela se apresenta, embora tente com os anos ter a ter a me adaptar e estar mais… E ser um cidadão mais comprometido com os meus deveres e etc. Mas nasceu dessa incompatibilidade, nasceu de uma… Enfim, eu também cresci num… Num sai de uma família em turbulência naqueles tempos e isso também foi… Queres falar sobre isso? O que é que era uma família em turbulência? No sentido em que o meu pai e a minha mãe separaram-se quando nós tínhamos 3 anos e havia a Joana, a minha irmã gêmea, e a minha mãe ficou com dois miúdos, duas crianças para cuidar, fomos viver para a casa da minha avó, que morreu em dezembro do ano passado e que também é o tema que prepassa este último livro de ensaios, que se chama Uma valsa com a morte, também por causa da morte dela, ou por causa da morte dela. E portanto a infância foi um sítio de alguma desagregação familiar, mas isso ao mesmo tempo que me trouxe alguma angústia, também me trouxe a capacidade de criar algo a partir dos destroços, do que teria sido uma vida familiar normal, que é um pai e uma mãe bem ajustados, que gostam dos filhos… Quer dizer, não estou a dizer que o meu pai e a minha mãe não gostavam de nós de modo nenhum, mas o núcleo desagregou-se. Quando o núcleo se desagrega as crianças são as que sentem mais, porque os adultos já têm capacidade para lidar com a separação, com o divórcio e pronto, por mais que lhes custe, já estão armados com esses instrumentos emocionais. Uma criança não E, portanto, essa pequena tempestade que aconteceu ali foi muito impulso, deu-me muito impulso à minha criatividade. Eu preciso de, durante grande parte do meu tempo, não estar aqui, não estar nesta dor. E isso é engraçado de pensar hoje em dia, porque não acho que haja ninguém que tenha uma profissão criativa ou que seja um escritor etc, que
Jorge Correia [00:57:14]:
não tenha algumas características destas. Tem que haver sempre uma dor inicial que te força, que te empurra. Lá está. Acho que sim. Como o Uncle Joe. Sim,
João Tordo [00:57:23]:
outro dia estava a ler um livro de uma escritora espanhola, Rosa Montero, que foi um dos livros que eu acabei agora de ler. A Louca na Casa, esse era sobre imaginação, que é um livro… Mas este é muito parecido, é um livro que se chama O Perigo de Não Estar no Meu Perfeito Juízo. É muito giro o título e ela escreve sobre a criatividade e sobre a loucura e eu identifiquei-me muito porque ela diz qualquer coisa como que segundo a investigação dela os escritores que são mais propensos à maluquice e a um dia saltarem de uma ponte são aqueles que perderam um semelhante, Anas, numa fase muito precoce das duas vidas. E eu tive um irmão gêmeo idêntico, que faleceu com poucas horas de vida. E restávamos eu e a Joana, mas nós éramos três. E é engraçado quando eu penso nisso e quando de repente leio a Rosa Monteiro a dizer precisamente isso, percebo que em mim sempre houve uma falta, logo à partida havia ali um vazio enorme E esse vazio juntaram-se às circunstâncias da infância e depois, claro, depois eu tive que ir resolvendo essas coisas dentro de mim, mas também fui resolvendo muito à custa dos livros e hoje em dia tenho uma relação ótima com a minha mãe, com o meu pai e com a família. E, portanto,
Jorge Correia [00:58:48]:
ainda bem que as coisas foram assim porque senão eu acho que não teria sido escritor. O que é que eles te dizem quando ganhaste, por exemplo, o prémio Saramago? O que é que o teu pai e a tua mãe te disseram?
João Tordo [00:58:57]:
Eu acho que o meu pai riu-se
Jorge Correia [00:59:00]:
naquele bom riso, não é? E a minha mãe ficou… Como é que é esse riso? É um riso de quê?
João Tordo [00:59:06]:
Não sei, é aquele riso de um pai que está satisfeito, não é? Aquele riso de satisfação depois de comer uma bela refeição. E a minha mãe é mais racional e disse Ah, que bom e tal, não sei o quê, então quando é que é a entrega do prémio e tal? E pronto, lá fomos todos à entrega do prémio, foi em Penafiel, já foi há tantos anos. Em 2008, lá fomos nós todos à entrega e eu era um miúdo, né? Quer dizer, pelo menos tinha 33 anos, agora tenho 47, já viste? Eu era um miúdo ao país do Saramago e estava por lá a tramber por todos os lados. E a tua irmã? A minha irmã também foi. A Joana também. E eles
Jorge Correia [00:59:39]:
são teus bons leitores ou esperam um bocadinho antes de ler o próximo livro? A minha mãe e a Joana leem os meus livros todos, acho que sou eu.
João Tordo [00:59:46]:
Sobretudo a minha mãe nos últimos anos lê os meus livros todos e gosta muito dos policiais. Eu também escrevo para eles. Acho que a minha família, nós somos muito próximos hoje em dia e como somos muitos irmãos e muitos sobrinhos e se nos juntarmos todos à mesa, somos tipo uns 20 entre crianças e adultos e não sei o quê e somos muito próximos e para mim é muito bom ter esse amparo sabes? Tu faz tipo todos os fins de semana ir almoçar com eles e com a família, etc. Aí eu, chegando a esta idade, eu troco de bom grado viagens ao estrangeiro ou festivais de não sei onde, de literatura, troco isso tudo por Almoço sem Família. Olha, vamos fechar. Um bom título de um livro, escreve Santos, do livro estar escrito ou depois? Boa pergunta. Olha, ando às lutas com o título deste próximo livro há meses, mas agora acho que já chegámos lá. Mas às vezes escrevo certo. Houve certos livros que eu soube exatamente qual era o título. Quando escrevi o Felicidade era esse o título, porque era ao mesmo tempo um estado de espírito, é um substantivo e é o nome de uma personagem, por exemplo, perfeito. Outros livros como, por exemplo, O Bano Sabático, também foi um título logo imediato, O Bom Inverno, mas houve títulos como, por exemplo, O Ensino a Me Voar Sobre os Telhados. Foi um título difícil de chegar lá. E é maravilhoso! Eu tive quase 100 títulos antes desse e depois de repente houve um dia e disse, ah, é isto. Por exemplo, a noite em que o Verão acabou também demorei meses a chegar lá. Portanto, às vezes preciso de ajuda, de ajuda da Clara, das outras pessoas que trabalham na Pênguim, que vão opinando e portanto, embora o livro seja sempre meu, há uma parte substancial que é um trabalho colaborativo.
Jorge Correia [01:01:39]:
Até porque depois o título do livro também ajuda ou não aos caparazzi e à venda e à primeira entrada. Claro, claro. Quem nunca te leu, começa por onde?
João Tordo [01:01:48]:
Eu acho que quem nunca me leu pode começar pela Felicidade, que eu acho que é um livro que saiu muito redondo e que eu gostei muito de ter escrito. Eu não gostei de ter escrito os meus livros todos, ou há uns que eu não gostei nada de ter escrito, Porque foram difíceis, porque tiveram muitas revisões, porque… Há que levar muito tempo, etc. E o Felicidade foi escrito ali em 4, 5 meses e quando saiu eu pensei isto é um bom livro, isto é um livro que eu tenho orgulho nele e por isso acho que é um bom livro para começar. Tenho uma última curiosidade.
Jorge Correia [01:02:16]:
Como é que se decide? Tu escreves o livro, escreves o livro, os editores opinam por aí fora, como é que se decide o momento, isto já está feito, eu não mexo mais nesta coisa, quero é… Livrar-me, ficas com uma sensação de alívio, angústia, vazio, o que é que se sente?
João Tordo [01:02:38]:
Estava a tentar encontrar aqui uma comparação, é mais ou menos como se tu saís de casa com os ténis muito apertados, Quantas horas é que tu consegues aguentar na rua até ter que os tirar? É mais ou menos a mesma coisa. É quando os calos já são tão grandes, quando já estás a sangrar dos pés, é tipo, ok, já não aguento mais. Mas normalmente, isto traduzido para a prática, eu entrego-lhe para a editora e depois faço várias reescritas, as sugestões vêm e vêm e vêm, são para aí quatro ou cinco de mão e depois ainda vai à revisão e depois ainda faço uma última leitura. Demora algum tempo, mas há uma altura em que os pés já estão a sangrar e portanto está na altura de mandar o livro para o mundo. Escrever não deve ser um exercício sem efeitos secundários e este alívio ao entregar o manuscrito para publicação
Jorge Correia [01:03:26]:
dá uma dimensão desse misto de dor e de alívio. Mas se o leitor e escritor João Tordo aceita esta compulsão das palavras, só podemos seguir a sua torrente e ler o que escreve. Dos seus viciantes policiais até aos ensaios que nos colocam perante o espelho da condição humana. É essa condição humana e insular que espero ver em Rabo de Peixe na segunda temporada. Entretanto, entretenho-me a ler o seu livro Felicidade, uma história de um amor que mete trigémias. Preciso dizer mais alguma coisa? Até para a semana. Boas leituras. 🎶