Esta semana navegamos no mar da política, da maneira como tomamos decisões e dos clubes do poder.
Um mergulho na maneira como escolhemos os nossos líderes e como tomam eles as melhores ou piores decisões.
Tudo num palco mediático gigante, com julgamentos ao minuto nas redes sociais e frases ditas para criar agenda ou espalhafato.
O mágico momento em que a política, a comunicação e povo de encontram na praça pública para definir o futuro.
Sim, falámos de saúde.
Claro que falamos de saúde.
E sim, falámos de política.
Mas falamos principalmente da maneira como decidimos fazer as coisas.
Como levamos o mundo para a frente ou jogamos para o empate.
É um diálogo sobre liderança.
Sobre grandes ideias congeladas por falta de dinheiro ou ideias desastrosas levadas avante por causa de agendas políticas, ou egos gigantes.
Esta conversa dura há vários anos.
Adalberto Campos Fernandes e eu falamos destas coisas há muito tempo.
Sem microfones. Sem gravador.
Apenas pelo gozo de interpretar, especular e medir a temperatura dos verdadeiros donos disto tudo.
Antes dele ser ministro, depois dele ser ministro. Durante o tempo em que, também ele foi, à sua maneira, um dono disto tudo.
Teve ideias, formou equipas, tomou decisões.
Foi elogiado e metaforicamente espancado no palco político.
No campo da saúde, todos os ministros e ministras podem fazer o melhor trabalho do mundo durante meses, mas estão sempre na linha de risco da popularidade medida nas sondagens. O doente que não teve consulta. Que não consegue a cirurgia. A ambulância que não chegou. O hospital que não respondeu.
Em dezenas de milhões de atos em saúde, em todo o país, 24 horas por dia, 365 dias por anos, há sempre algo que não correu bem.
E basta um momento para que o Primeiro-ministro decida refrescar a equipa, remodelar, repensar, dar um novo rumo.
Até ao próximo acaso ou tempestade real, ou mediática.
A saúde é demasiado importante e por isso a nossa exigência é máxima.
Quis por isso, nesta semana do dia mundial da saúde, mergulhar na maneira como se tomam decisões políticas neste campo.
Mas não só. Quis saber como funcionam os clubes do poder.
As escolhas, as pessoas, as dinâmicas.
Saber quem e como se tomam as decisões que mexem na nossa vida.
Siga o pensamento de Adalberto Campos Fernandes aqui.
TRANSCRIÇÂO AUTOMÁTICA
00:00 JORGE Ora vivam, bem vindos ao Preguntas Simples, o vosso podcast sobre comunicação. Nesta edição Cantamos o Desafio. De concertina na mão, no terreiro de Romaria, de improviso, Cantamos o Desafio. É um regresso ao mais puro cantar do alto minho. Uma espécie de cantigas de escárnio e maldizer, mas em forma folclórica. Típica das Romarias, mas não exclusiva do minho. O Alentejo, os Açores, outras regiões têm esta maneira de cantar ao Desafio. Com diferentes métricas e músicas, mas são na mesma cantigas ao Desafio. Nesta edição ouvimos o mestre Augusto Canário, mestre do dito e do não dito. E do quase dito. Todos percebemos o que ele ia dizendo, mas não disse. Mas o rei da palavra aparece-nos logo na cabeça. Estamos por isso no terreno do subentendido, uma marca fundamental da linguagem humana. Cantar ao Desafio faz parte da alma do alto minho. Frente a frente, com os pés na terra, na taberna ou junto a uma capela da Romaria. Dois homens, agora também mulheres, jogam com as palavras em rimas para gozar uns com os outros. Há regras próprias desde cantar ao Desafio. Há um ritmo marcado pela concertina. Há uma praxe. Primeiro as apresentações, depois o jogo de menorizar os oponentes através de finas rimas. Há neste jogo algumas regras não escritas. As canções são sempre de improviso. O objetivo é mostrar-se maior, mais capaz, mais bonito, mais tudo. Ora cantando os seus feitos e características, ora gozando com os fracassos ou defeitos dos outros cantadores. No Cantar ao Desafio, os temas rodam muitas vezes pelo sexo. Também aqui há uma arte. Os cantadores dão a entender, mas nunca são explicitos. Há um jogo de subentendidos, uma espécie de código que é percebido entre cantadores e espectadores. Usam-se analogias. Usam-se os sorrisos manotos. Usam-se as rimas que sugerem a palavra explícita, que afinal nunca aparece. Esta arte chama-se repentismo.
02:27 CANÁRIO E Augusto Canário é, a par de Kim Barreiros, ícone maior desta maneira de cantar. Normalmente apresenta-me como cantador e principalmente artesão de cantigas. Houve um tempo que eu me titulava. Aliás, tinha um cartão de visita que dizia Tocador de concertina e cantador por paixão. Não deixou de ser isso, mas como era um nome, digamos assim, muito pomposo e muito grande, artesão de cantigas é como eu gosto de ser chamado. E como é que as pessoas que encontram nos concertos e por aí na rua, como é que o tratam? Muitas vezes perguntam-me se… Augusto, desculpe, Canário. Não sei se eu posso tratar por Canário, obviamente que podem. Muito carinhosamente, muita gente chama-me Canarino.
03:17 JORGE O Canário é o homem que toca a concertina, o homem que canta o desafio, o homem que usa um chapéu amarelo. Amarelo, sim. Foi um acidente ou foi…
03:26 CANÁRIO Foi um feliz incidente, digamos assim. É uma incidência, portanto, nada de mal. Portanto, como toda a gente sabe, os Canários associam-se imediatamente à cor amarela. Embora haja Canários de várias cores, que eu sei que há. Então, um dia um amigo meu que tinha uma retrosaria, uma loja de dessas coisas, que fazem falta às senhoras e não só, ali em Viana do Castelo, telefonou-me que tinha uma surpresa para mim. E eu fui lá ter com ele e ele apresentou-me um chapéu amarelo. E eu fiquei muito satisfeito. E a reação foi? Foi muito agradável. Ali eu disse-lhe, olha, tens aqui um chapéu… Ele disse-me, olha, tens aqui um chapéu que um amigo meu fez, um amigo meu que tem uma chapelaria, uma oficina, portanto, uma fábrica de chapéus, já agora é a real em Libeira de Azemês. E eu passei a usá-lo e ele disse, olha, se quiseres mais, falas com ele o que ele faz. Pronto, e assim foi. Eu passei a usar o chapéu, só tinha aquele. Um belo dia, portanto, de tanto pôr e tirar com a gente… Que és fósil o chapéu. O chapéu ficou um bocadinho sujo. E uma das minhas cantadeiras, a Naty, resolveu-lhe, olha, deixa estar com o levo do chapéu para lavar e mandou-lhe lavar a seco e o chapéu ficou rigorosamente como o chapéu de um pobre. Oh desgraça. Todo desfeito e entretanto, pronto, como falámos com o nosso amigo Luís, de uma ciara de sarnes, que é o nome da freguesia, e ele fez mais chapéus. E depois aquilo passou a ser uma imagem de marca e passámos a ter chapéus, digamos assim, para os nossos admiradores, para os nossos seguidores. E hoje, mesmo que eu ando normalmente na rua, quero viajar, quero passear, enfim, a cuidar da vida, as pessoas quase que me… Então, mas você hoje não traz o chapéu. Você é gente que passasse a andar de chapéu amarelo, ainda por cima, na rua. Porque tivesse que fazer sempre o boneco, sempre o boneco que as pessoas veem no palco. Mas criámos o boneco, o boneco é aquele. E literalmente o boneco, porque, inclusive, em uma gravação do DVD do último, que foi em Braga, no São João, aqui aos anos, fizemos uma coisa genuína e inédita, que foi compor um boneco vestido tal qual que o meu me visto, mais ou menos desde os sapatos até o chapéu, o colete, a camisa, tudo, com uma concertina amarela. E em determinado momento, na parte da desgarrada, eu saí e o meu colega, o Miranda, continuou a cantar e aparece um amigo meu, um ator, a manusear, a manipular o boneco. E o Miranda ficou a cantar com o boneco, a cantar com o boneco, quem canta era eu, da parte de fora do palco. E depois aparecia eu, então já não era um boneco, eram dois, era o original
06:12 JORGE e a réplica, literalmente um boneco. Nós estamos aqui numa, posso chamar isto uma adega de sons?
06:19 CANÁRIO É pá, nunca ninguém tinha chamado isso, mas eu gostei, gostei.
06:22 JORGE A adega de sons. Estamos aqui rodeados, tem a adega de sons. Guitarras atrás, as concertinas.
06:28 CANÁRIO Comunica mais com as palavras ou com a música ou isto? Eu comunico muito com as palavras. A música só, eu não faço música instrumental, portanto, pouco fazemos de instrumentais. Houve uma altura que nos discos metíamos um instrumental. Nós fazemos basicamente conversas com cantigas. As cantigas têm um cariz popular, algumas brejeiro, outras sérias, mas têm a matriz do domínio, digamos assim, ou da música popular de raiz tradicional. E aquilo que nós fazemos mais e que eu faço o melhor, digamos assim, ou se calhar menos mal, é cantar ao desafio, é ser repentista. Isso faz-se com as palavras. Repentista, isso interessa-me. O que é que é o repentismo? O repentismo, mas primeiro vou responder, acabar a concluir a ideia anterior, que é, nós fazemos uma espécie de caricatura com as palavras. Nós brincamos com as pessoas, nós insultámos-nos, os cantadores uns aos outros, estou a falar da forma de cantar,
07:25 JORGE a brejeira do alto domínio e domínio em geral, ou entredouro em domínio, se quiser. Como é que é isso? As pessoas que não conhecem isto, que nunca viram o cantar à desgarrada, que nunca tiveram a sorte de ir a São João de Arga ver essa desgarrada. O que é que acontece? Podemos pintar o quadro?
07:40 CANÁRIO Podemos pintar o quadro. Portanto, nós, cada cantador ou cantadeira, isto num palco, ali o palco é o mais natural possível, é o terreiro. Não há som, é sem rede, sem som, sem nada.
07:52 JORGE Não há microfones, é o chão da era no fundo.
07:54 CANÁRIO O chão da era é a terra, é a tasca, é o underground, digamos assim, é o lugar mais natural das cantidades ao desafio, que não é o único neste momento. E então a gente como é que faz? Apresenta-se novamente, as pessoas conhecem-nos e então já nos seguem, para os mais velhos, aos mais novos que estão agora a surgir e já afirmados como bons cantadores e boas cantadeiras. Há uma assinatura? Há uma assinatura, é a fama que a pessoa vai criando ao longo do asteira que vai deixando conforme vai cantando. E então a gente, nós queremos ser sempre os melhores. Então para isso nós tentamos rebaixar o outro, ou então não é preciso rebaixar, basta mostrar aquilo que a gente sabe em termos de um tema que é puxado, que pode ser um tema da vida do santo, ou então a gente exaltar as nossas qualidades em detrimento das do outro. Isso é, e depois claro, quando se trata de um homem e de uma mulher, normalmente vai parar aquilo, que é o que toda a gente gosta de dizer. O que é aquilo? São os combates de natureza sexual, é mesmo assim, não há outro, e as pessoas adoram isso, obviamente que sabemos que estamos a brincar, porque é mesmo a brincar. Tempos houve em que poderia desandar numa grande luta de barapaus e etc. Numa pancadaria, quando a malta se zangava ou se calhar bebeu mais um copito. Também tinha-se feito, mas neste momento não, neste momento não vamos por aí. O que eu faço bem, eu acho que faço bem, e com outros amigos, é realmente puxar um tema e desenvolver-lo e brincar também com aquilo que não rodeia, muitas vezes com as pessoas, com as situações, porque hoje o cantar é um desafio, sou um estudioso do assunto e gosto muito de desenvolver esta temática. Espero que um dia este cantar domine as ilhas, porque são outras nuances diferentes, mas o repentismo é isso e já vamos responder o que é o repentismo. As pessoas gostam de ouvir brincadeiras, chalaças, brejeiriços, picantes, nós chegamos a perguntar às pessoas se gostam de ouvir picantes, mas também gostam de discutir cantando um tema sério. Não é só para pandear. Nos próximos tempos, isto é, no dia 6 de abril, aqui na minha terra, vamos cantar eu e Mês, um cantador e duas cantadeiras, sem microfones, no chão, digamos assim, vamos fazer um percurso de seis ou sete capelas que temos aqui na nossa vila e vamos cantar um bocado a paixão de Cristo, isto é, sobre as 14 ou 15 ou 16 estações que o João Paulo II acrescentou de hoje. E aqui está outra coisa que é muito importante, é os conhecimentos que a gente tem, porque o que é ser repentista? Repentista é há moda do mimo, há moda das beiras, há moda do alentégio, com o baldão e o despique, há moda da madeira, do bailinho e do despique, ou há moda dos açores, desde a desgarrada, a cantoria ou as velhas, improvisar cantigas nos formatos poéticos que nós temos, portanto, a sextilha ou a quadra ou a dupla quadra, ou a quadra com rima cruzada ou rima com dois brancos e cruzado ou emparelhado, consoante a estrutura que cada região tem e fazer cantigas com isso em cima das melodias próprias de cada região e com os instrumentos próprios de cada região.
11:16 JORGE Quer dizer que não é um fenómeno exclusivo do Altuminho, onde… Bom, eu também sou um altiminhoto, portanto, lembro-me sempre de isto desde pequeno.
11:24 CANÁRIO Obviamente, a nossa tradição é essa. Eu tenho 63 anos daqui a dois ou oito dias, exatamente, no dia 7 de abril farei 63 anos de lá chegar e canto desde os meus 16, 17, quando comecei. Havia muito poucos cantadores e para cantarmos com os mais famosos não era fácil porque tínhamos que ir à Romarias onde eles cantavam. E eles cantavam onde? Nas tascas, longe da vista dos padres. Era o descanto, digamos assim. Que era para escapar a censura ou para estar mais à vontade? Porque normalmente o cantador era associado à pessoa que bebia vinho. O vinho, como sabemos, criava certas perturbações que não seriam as mais adequadas a uma festa de carê religioso. Eram poucos santos. Eram poucos santos. E, portanto, havia um outro que cantava realmente as temáticas sagradas, o cantor sagrado, e, portanto, não eram bem vistos. E ele estava a habitar natural, para atenção, mantém-se. E lá, como é que era? Eu não podia ir porque eu nem tinha idade, nem meios, nem sabia de muitas dessas Romarias. Só mais tarde, já com os meus 20 e poucos anos, integrado em grupos. E depois, por minha conta, porque passámos a ter o grupo Cantar do Minho, fomos um bocadinho pioneiros a trazer os cantores a um desafio pró-palco. Está-lhe a conferir, portanto, categoria de palco nos nossos espetáculos. E depois nós e um ou outro cantador, a partir daí, estávamos a falar de 84, passámos a ter registros de discos, digamos assim, já havia alguns em vinil, depois a cassete, o cartucho já é anterior a um ou outro, muito poucos. E depois, claro, quando se aproximou, quando chegou o tempo do CD, já foi assim uma coisa do outro mundo. Mas quando chegaram as máquinas automáticas, como instantâneas, como sejam os minidiscs e mais tarde os telemóveis, Explodiu. Explodiu. E hoje é na hora que se passa aqui, sabe, se houve todo mundo. E temos, nós estamos aqui a misturar um conjunto de ideias, mas também é que estamos a conversar. O Cantaró Desafio hoje não tem nada a ver com há 25 anos atrás, e não é preciso mais atrás. O que é que mudou? Mudou só a tecnologia ou não? Mudou a tecnologia, mudou a temática em termos de diversidade, passou a ser basicamente uma temática, porque hoje pouco mais de canta do que aquilo, especialmente quando são cantadores e cantadeiras.
14:01 JORGE Apenas o picante, apenas o sexo. Mas isso não faz perder um bocadinho da riqueza das coisas?
14:07 CANÁRIO Talvez, mas agora assiste-se também nos últimos tempos a uma consciência disso. E por exemplo, chegámos aos canais de televisão.
14:15 JORGE E isso tem uma fronteira mais complicada ao público em geral, menos habituado se calhar?
14:20 CANÁRIO Não, não, mas foi uma forma, eu estou a referir concretamente à RTP, à Praça da Alegria, que criou há uns anos, dois ou três anos, concursos de cantinhas ao desafio.
14:33 JORGE Lembro-me de ver como júri e trazer pessoas a cantar.
14:37 CANÁRIO E pessoas de todo o país, quando havia uma ideia de que isto era só aqui no Minho, no Minho é que era, no Norte. E não, nós temos gente a cantar ao desafio de improviso,
14:46 JORGE de várias formas, aquilo que eu antes disse, em todo o país. Como é que se aprende? É possível ensinar a cantar ao desafio?
14:51 CANÁRIO É, mas voltando ainda ao papel que a comunicação social tem. Eu sou um conversador muito indisciplinado, já percebi, não é? Mas eu sou muito firme naquilo que quero concluir. É da arte do professor, se calhar? Não sou professor, propriamente dito, mas desempenhei ainda, hoje estivemos a trabalhar com crianças sobre o assunto. Então ensina-se. Mas antes disso, na televisão, qual foi o papel que a comunicação social teve, especialmente a televisão, e é a RTP neste caso, foi ao criar um concurso, posto em confronto, primeiro, basicamente Minho. Posto em confronto também alguns cantadores que vieram da diáspora, portanto vieram do estrangeiro, porque passou a desgarrada, e o cantar ao desafio, e o folclore, e a música popular, e as concertinas, que tiveram aqui um papel crucial de há 30 anos para cá, desde mais ou menos 96, 97, 95 por aí, que começaram a fazer os primeiros encontros de tocadores de concertina e por arrasto de cantadores ao desafio. Portanto, isto tem uma importância nas comunidades, em todo o mundo, não é só na Europa, em todo o mundo, na América, no Brasil, na Austrália, que eu conheço e onde já estive, portanto, e sei que as pessoas dão um valor incrível, mas de todo o país, não é só os minutos. E também valorizam, consoante as incidencias, para onde vão as pessoas, estou a referir-me aos açorianos, que têm muita gente, especialmente na América, e no Canadá, e nas Bermudas, e por ali, e portanto, levam muitos cantadores da sua região a cantar e têm-nos lá, nas comunidades. É uma marca cultural e uma lembrança de Portugal. E uma lembrança de Portugal e uma coisa que, se calhar, é a mais importante, que muitas pessoas sequer pensam ou valorizam, que é, jovem, ainda comprovei isso o fim de semana passado em França, jovens que são lusodescendentes nos países onde os pais emigraram, já de segunda geração de poderes, de segunda e terceira e de quarta geração, e que cantam em português, habitualmente falam em francês ou na língua dos pais onde residem, mas aprendem e compreendem e gostam, embora com o sotaque de cantar em português ao desafio. Isso parece que não, mas é também uma forma de preservar e desenvolver e de transmitir, manter, digamos assim, a utilização da nossa língua nesses jovens que muito provavelmente já não vêm viver para Portugal.
17:19 JORGE Nós estamos a fazer tudo o que podemos para preservar essa matriz cultural.
17:24 CANÁRIO Não, eu acho que não. Primeiro, há que, neste momento, e é uma das minhas preocupações e luta, eu descobri que sou neste momento missionário dos cantares ao desafio. O que é que é isso? Qual é a missão do missionário? O missionário tem uma missão. E qual é? É por isso. Neste momento, a minha missão é fazer tudo o que for possível em várias linhas de orientação, de atividade, sobre os cantares ao desafio. Olha, a dar esta entrevista e falar sobre o assunto, porque o Canário é basicamente um cantador. Podia estar a falar aqui do tipo de concertos que tem, o que foi eu que criei este tipo de grupos que hoje temos, com as concertinas de base, mais bateria, mais baixo, mais piano, mais violino, etc. Mas não, estamos a falar de cantias ao desafio, de improviso e de repentismo. Por quê? Porque é por aí que eu sou identificado. E como as pessoas me reconhecem, graças a Deus, duas coisas importantes, é a minha capacidade de improvisar, de ser repentista, de ser capaz de cantar umas velhas da terceira, como cantar uma desgarrada do mino. Custa-me muito ainda cantar um despique, especialmente um baldão, do alentejo, mas a qualquer deles eu me adapto e consigo desenrascar-me. Ou então interagir com brasileiros do Ceará, que têm outras formas de fazer repentismo na nossa língua, ou com os galegos, têm a regueifa, eu consigo muito interagir com eles e não me saio nada mal.
18:47 JORGE E consegues perceber se todo este cano, toda esta água vem da mesma fonte, ou são fontes diferentes que se encontraram numa determinada altura?
18:56 CANÁRIO Podem ser canos diferentes, de nascentes diferentes, mas a matéria é a mesma, a água é a mesma, portanto, a seiva, se quisermos. Por quê? Porque trata-se da língua, trata-se de utilizá-la de improviso, trata-se de utilizar melodias tradicionais de cada região, mas que no fundo acabam por ser do mesmo povo, de uma mesma origem. E então dizia eu que reconhecem-me também esta capacidade de dar valor a esta tradição. E então eu, neste momento, procuro tudo o que esteja ao meu alcance, seja a trabalhar com projetos apoiados por comunidades intermunicipais nas escolas, já o fizemos na pandemia, infelizmente, um projeto monumental que se chamou Ixama, de repente canta a gente, em que a gente foi às escolas ensinar os jovens de 9, 10, 11 anos a improvisar, qual era a estrutura mental que nós usámos para, e fez-se um trabalho fantástico, não para conseguir obter muitos cantadores ou cantadeiras, mas para que percebam que, para além da música dos nossos dias, há aquela outra anterior da nossa matriz, da nossa origem, dos nossos pais, da nossa raiz, mas também, como ainda hoje fiz, pronto, num projeto do artista bem à escola, e levar, mais uma vez, a essa possibilidade de os meninos fazerem a sua quadrinha, aprenderem qual é a nossa estrutura para responder, tudo isso. E mais do que isso, depois, nos programas de televisão, nos discos, nos espetáculos, em tudo o que nos é possível, nos encontros com vários cantadores e cantadeiras das várias regiões do país e do mundo, com neste momento já podemos falar assim, tentar, mais tarde ou mais cedo, criar um corpo científico, podemos chamar assim, um corpo estruturado. Um corpo teórico. Teórico, chamemos, se calhar, mais corretos, para que o cantar ao desafio seja também reconhecido, primeiro, como património material cultural e registado no nosso registro nacional, que não está, nem está, são cedadas passos, mas são suicídios, não há ainda, digamos, uma linha formal, vamos por aqui. Não, estamos a preparar caminho, estamos a desmatar. E depois, mais tarde, que isso seja reconhecido pelo Unesco como património material cultural, já com projetos de salvaguarda criadas no Alentejo, na Madeira, nos Açores, no Minho, que aqui foi dado, se calhar, o pontapé de saída, não é sério, com palestra com homens como o Dr. Arnaldo Saraiba, como o Dr. Alberto Sardinha.
21:36 JORGE Para seguir um bocadinho aquilo que foi a matriz, por exemplo, do canto alentejano. Exatamente, exatamente. Também é uma forma de proteção da cultura.
21:43 CANÁRIO E de proteção e de desenvolver, porque tanto quanto sei, o canto alentejano é uma forma de cantar que se praticava, mas não tem dúvida nenhuma, que hoje pratica-se muito mais por jovens. E o fado é igual, o fado é igual. O fado tinha também um conjunto de intérpretes, especialmente radicados na cidade, em Lisboa, passou a desenvolver-se também muito mais no Porto do Quilco, que já era, e noutros sítios, noutras nossas terras. Temos aqui hoje, hoje há uma prática de ouvir fado, aqui na minha terra, aqui em Viana, aqui em Vila Nova Danha, nas nossas terras, nas minhas coletividades. As juntas de freguesia promovem noites de fado com muito mais incidência e mais frequência, desde que o fado foi considerado património e material da humanidade.
22:31 JORGE E aqui ao lado, em Marcelos, a Gisela Esbão, que é uma das fadistas mais extraordinárias.
22:36 CANÁRIO A Gisela, se calhar, já era. Nós estamos a falar de gente que não é famosa, gente que não canta o pior, atenção. E guitarristas, o ensino da guitarra saiu de Lisboa e passou por via desse facto de ser considerado património. Portanto, hoje nós temos uma riqueza imensa no fado, no canto, vai ser agora o canto a vozes, especialmente coros de mulheres, que está a ser muito bem trabalhado e muito bem encaminhado para ser, pelo menos, não sei até se já foi feito o seu registro, o Registro Nacional de Património e Material Cultural. E nós cantadores, pelo menos alguns que temos mais consciência,
23:14 JORGE achamos que esta forma de cantar que merece também, pelo menos, ser preservada. Como é que se ensina a cantar? Como é que se ensina a cantar ao despido, a esse repentismo? A quem não sabe?
23:25 CANÁRIO Aquilo que eu tenho. Os cantadores não ensino nada a ninguém. E um cantador ensina o outro. Porquê? Porque o cantador quer ser o melhor. Então, eu vou dar um exemplo. Quando eu comecei a cantar ao desafio com o meu amigo Miranda, já lábamos 41 anos, chegando ao dia 1 de maio, já celebrámos os 40 ao ano passado, nós, cada um cantava por aquilo que sabia. O Cândido, o pai, sabia umas quadrinhas, ensinava-lhe e eu sempre gostei de desenvolver as minhas sem que ninguém me ensinasse. Escrevendo-as? Não, não, não.
23:59 JORGE Não me lembro de escrever para cantar. Qual é a parte do improviso e a parte da preparação?
24:05 CANÁRIO Já lhe explico. Eu sempre tentei aprender, responder, ainda hoje é assim, a coisas feitas, porque se eu responder a coisas feitas, consigo desarmar quem só sabe aquelas. Então, a gente desenvolve uma capacidade de… Depois temos duas coisas fundamentais. A perspicácia, estar atento, e o conhecimento das coisas. Eu não sou especialista em nada, é sempre um bocadinho de tudo, como eu costumo dizer, às vezes. E então, isso dá-nos um traquejo para respondermos sem termos que nos fixarem. Obviamente, porque muitos cantadores, e eu também, ouvimos dos mais velhos e vamos aprendendo coisas. Mas depois, quando vamos ensinar, neste momento, aos meios, por exemplo, o meu nome é Augusto Canário. Canário é uma palavra que rima com muitas palavras. Augusto rima com menos. Vila Novadanha, quando a gente diz de onde é, também há uma outra palavra que rima, mas há outras que é muito difícil. Então, o que é que nós ensinamos aos meios ao versijar, ao escrever versos ou ao tentar? É, primeiro, antes de cantarem no seu treino, que muitas vezes fazem, quando pensam, aprender palavras que rimem com aquelas que nós queremos rimar, por exemplo, silêncio. Um indivíduo que se chama Gaudencio, um indivíduo que se chama Porfírio,
25:24 JORGE estamos a falar de coisas concretas e objetivas. E essas palavras difíceis evitam-se colocando outras à frente?
25:30 CANÁRIO Colocando ou o diminutivo, ou o aumentativo, ou colocando-as fora do sítio. Finalmente, outra coisa importante, quer dizer, que a última frase seja, digamos, a palavra chave, ou seja, a chave que abre toda a ideia que vem de trás. Isso é que é um bom cantador, normalmente canta, canta, mas quando a gente está a cantar não sabe o que vai dizer. Quando a gente chega à terceira ou quarta frase, já toda a gente adivina o que vai sair,
25:57 JORGE já é uma coisa que já não tem aquela força. Portanto, faz como os humoristas, vai preparando o campo, por um lado, vai deixando umas migalhas ao longo da cantoria
26:10 CANÁRIO e subitamente há o desfecho que nos sobrevende. Se lembrarem de isso há um bocadinho, que nós somos caricaturistas com palavras. Caricaturista, desenha, exagera nos traços, o rosto ou uma figura, não é? O que o torna um observador. Observador, muito atento sempre, muito mesmo. E não é por acaso, já agora, porque os cantares, o que é que evoluiu também, há bocadinho falámos nisso, mas não concluímos. Hoje o cantário desafio, e eu sou responsável por isso, juntamente com o meu amigo Miranda, tem uma utilização, é utilizado para animar festas de todo o tipo que possa imaginar. Enquanto há uns anos atrás era na Romaria, era na Tásca, que era atrás da Tásca, era depois de um escovo, e mais não sei o que mais. Quase uma atividade subversiva. Subversiva, exatamente. E era porque, vamos ver, há quem defenda que o cantário desafio tem uma das suas origens, são as cantarias de escárnio e maldezer. É uma coisa que não está muito estudada e que requer a tal criação do corpo teórico. E, portanto, estou a fazer esse estudo, esse trabalho, antes num doutoramento que interrompi por motivo de uma saúde, de um problema de saúde há um ano atrás. Levou um susto? Levou um susto grande. Mas já está ultrapassado e eu continuo, não na universidade, mas a fazer o meu trabalho e vou aos bocadinhos, criando ou soquia ou saliva ou anotando. Estamos a trabalhar. Mas o cantador é também, muitas vezes, crítico social. E, portanto, muitas vezes não é por acaso que… Ah, pai, esse gajo é um gajo de copos. Para dizer o quê? Para dizer que o que ele diz não tem valor. Não, não, tem muito. E o problema é esse, é que muitas vezes quem põe o dedo na ferida é destratado ou desconsiderado porque põe o dedo na ferida. Então, porque quem tem mais consciência ou medo, enfim, é mais agradável à coisa e não cria problemas. Mas, basicamente, o cantar barajero e divertido, hoje é utilizado em tudo o que posso imaginar. Nós fizemos, eu e os meus amigos, não é só o Comirano, mas realmente o Comirano, fizemos animação em casamentos, batizados. Fizemos as bodas de prata dos noivos, fizemos o casamento e o casamento do filho que cantámos batizados, já são gerações inteiras. Nós cantámos em… Eu costumo dizer que os genéricos, os medicamentos, que nos vieram estragar o negócio, porque nós cantávamos muito e cantámos em todo o país para laboratórios na apresentação de novos medicamentos. Então dão-nos umas dicas e a gente depois brinca, verseja sobre aquilo.
28:42 JORGE Portanto, na realidade, tudo aquilo que for um tema… Dá para cantar.
28:45 CANÁRIO Cantável, digamos assim, mas também cantámos em festas de empresas, em sei lá o que mais, tudo o que se possa imaginar. E até voltando ao cantar do sagrado, portanto, do fundamento, desenvolver um fundamento era o quê? Era discutir a desgarrada, foi isso que nós fizemos na RTP, foi repor sorteio dos temas, o bem e o mal, o homem e a mulher. Agora com temas mais atuais, mais… Porque, por exemplo, no cantar o desafio tradicional, a linguagem utilizada e a, digamos, chamar a outro cantador gay para me dizer uma palavra mais agresta, hoje em dia, quem entra num tema desses
29:31 JORGE pode ser muito facilmente catalogado de homofóbico. E pode ser cancelado, no fundo, a dizer esta pessoa está a ser discriminada.
29:38 CANÁRIO Não, porque a maior parte do povo continua a achar graça aquilo e muita, e muita. E sabe muito bem que duas coisas, primeiro, não é numa geração ou duas ou três que se mudam mentalidades, nem é certo e sabido que a gente está a falar a sério, estamos a brincar, vamos brincando, mas, se pudermos evitar esse tipo de brincadeiras que vai ferir suscetibilidades outras pessoas,
30:04 JORGE eu não vou fazer uma cantaria que se chama Casamento Gay. Porque isso pode, no fundo,
30:09 CANÁRIO que as pessoas possam não receber bem aquela forma. Como, já agora, porque não tem nada a ver, mas também se percebe bem, como, por exemplo, sendo eu de um clube e o meu amigo Miranda de outro exatamente ao posto, nós antes podíamos brincar com o facto de um ser do Porto ou de um ser do Benfica, e hoje não, hoje temos de ter algum cuidado.
30:30 JORGE Portanto, há um conjunto de temas que geram, no fundo, alguma zeduma, alguma polémica. Isso não tem graça.
30:38 CANÁRIO Posso voltar à questão da lembrança? Já agora, por trás das redes sociais depois, porque isso também tem coisas que têm coisas de bom jeito, há o ataque, há o destratamento, há a má criação, a covardia. A maldicência, no fundo. Então, nós temos de ter essa inteligência de nos sabermos adaptar aos nossos tempos. Então, e agora, os tempos são de que tipo de temas? De continuar a brincar com os homens e com as mulheres. De continuar a brincar com os problemas da sociedade. Brincar, entre aspas. E acantar aquilo, nós temos de ter uma sensibilidade bastante grande para ver o público que temos na frente. Só que antigamente, nós tínhamos um público na nossa frente. Restrito, que estavam ali. Ali, quem estava ali estava. Eu ouvia, e sabias de ouvir e tal. Hoje não, hoje temos um público que está em todo o mundo, porque temos os telemóveis e temos tudo que está a ser filmado na hora e transmissível.
31:34 JORGE Com sensibilidades próprias e podem também ouvir e interpretar de uma maneira completamente diferente, até fora do contexto.
31:41 CANÁRIO E considerarem-se ofendidos. Um ou outro considerarem-se ofendidos. E como é que lida com isso? Lidamos bem, temos de ser inteligentes. Por exemplo, há um grupo de amigos meus na Galiza, em Santiago de Compostela, que estão a utilizar a regueifa. A regueifa é o nome que eles chamam, este canto de improviso, não é necessariamente instrumentos, na Galiza. Então, estão a utilizar-se nas escolas com miúdos, com miúdas, para combater, eles chamam, portanto, a violência machista. Nós chamamos aqui violência doméstica. Então, estão a utilizar isso. No Brasil, o cordel, que radica um bocado também, não no improviso, mas no verso popular tradicional, há muitos, conheço muitos amigos repentistas, improvisadores que se chamam poetas, que escrevem a literatura de cordel, e utilizam o cordel nas escolas com milhares ou dezenas de milhares de edições, utilizando uma escrita popular tradicional, que foi daqui para lá, para o combate à violência machista também, portanto, à violência doméstica, ao assassinato permanente que acontece todos os dias aqui em Portugal de homens, de mulheres, mais mulheres que homens. E portanto, acabamos por estar ligados à vida social, desta forma divertida, brejeira, brincalhona, como dizia um amigo meu, burlesca também. E portanto, nós temos é que saber adaptar os nossos dias. Por exemplo, eu vou cantar uma desgarrada à televisão, imagina-se, num programa indireto improvisado, na hora. De manhã. De manhã. E chego lá e apenho uma cantadeira que sabe cantar bem, que tem piada, que tem graça. Um problema para nós homens mais velhos. Uma rapariga bonita, uma mulher bonita, que canta bem, que tem boa voz, que se apresenta bem. O quanto do bem, digo, em todos os sentidos.
33:32 JORGE Começa logo a perder. Um só está logo a perder por 95% a favor dela. Mas também diria que enfrentaram Augusto Canari, e se calhar também não deve ser fácil.
33:43 CANÁRIO Qual é a graça que tem?
33:45 JORGE É gente saber defender-se sem ser grosseiro, sem trazer para casa, como se costuma dizer. Portanto, aproveitar a tensão que há naquele momento.
33:56 CANÁRIO Ter uma palavra chave, tensão. O cantor ao desafio é um cantor de tensão. Tem que haver, não é? Tem que haver. Tem que haver essa dinâmica. Tem que haver essa tensão mesmo. Há muitos cantadores que repetem, cantam duas, três, quatro, cinco, seis estrofes. E isso não tem graça nenhuma, porque quando vamos responder, já se perdeu, já nem nos lembrámos. Então, a tensão é mesmo. São uma ou duas estrofes cada um, sempre, que é para criar a tal tensão. Toma lá. Toma lá daqui. E essa tensão é que capta e é que mantém as pessoas ali focadas. Aglomeradas. Antigamente não havia microfones. As pessoas faziam aquela rodinha e dentro daquela rodinha era o centro do mundo. Deixa lá ver o que é que acontece. Hoje não. Hoje temos os palcos, temos os bons sons, temos bons microfones. Por exemplo, o Miranda criamos uma coisa muito engraçada há muitos anos. Ficar um no palco e o outro picar para fora. Do nada parece que fugiu e aparece. De repente, isso criou uma forma nova. Hoje em dia muita gente faz isso. Há uma dinâmica. Dinâmica diferente, que também é engraçada. E batemos aqui no outro ponto muito importante. Para além da linguagem adaptada aos tempos que vivemos, é as formas de interpretar o cantor ao desafio. Quantas vezes eu estou a tocar com a minha banda, com o meu grupo, e eu faço, dou dois toques, dou dois sinais para um dos músicos ou dois, eles passam a tocar jazz. Durante o concerto, durante a apresentação? Sim, durante o espetáculo, durante a desgarrada ou o blues. Um ritmo, uma cadência que não tem nada a ver com a cana verde, que é o ritmo base, o malhãozinho da nossa desgarrada. Mas aqui nós conseguimos interpretar em cima daquela malha, daquele ritmo, que não é muito diferente, obviamente, porque se não descuadrava a métrica das estravas, nós cantámos em versos epitacilábicos. Mas é um gozo, é uma coisa especial cantar naquela malha. E depois voltámos ao tradicional. Isso hoje em dia é nos permitido toda essa dinâmica, essa diversidade. Por quê? Porque as coisas não são estáticas. E a reação do público? A reação do público é fantástica. Há um ou outro que não gosta, que gosta mais de ouvir o que é o antigo. Estranha-se depois entre eles. Mas depois há aquela malta-mãe nova que adora, que sabe, músicos até. E começa a perceber. Esses que eles são tramados e tal, para não dizer outra coisa. Esses que eles são tramados e tal. E é que funciona muito bem. E para mim nunca houve tantos, nem tão bons, em simultâneo,
36:29 JORGE cantadores e cantadeiras como temos neste momento. Até porque esta malta nova é malta de escola.
36:33 CANÁRIO Esta gente sabe, aprendeu, não aprendeu de ouvido, aprendeu mesmo música. Para além disso, mas para além de mais, os bons cantadores e as boas cantadeiras jovens, uma boa parte delas, são pessoas formadas e são pessoas muito atentas. E aquilo que eu estou aqui a dizer, já se calhar já comunicámos da mesma maneira noutros meios, e essa gente ouve e aprende, e é inteligente. Portanto, e tenho… Porque o cantador antigo, a maior parte das vezes, era analfabeto ou cantadeiro. Analfabeto. Era um intuitivo, no fundo. Mais do que analfabetos, eram iletrados. Isto é, não sabiam ler nem escrever. Mas eram muito inteligentes, muito perspicazes e muito atentos. Portanto, eram cultos, apesar de não saberem ler nem escrever. Exatamente, era aquele culto do saber viver a vida, do estar atento à vida e àquilo que ela nos trazia. Então, quando iam cantar, ou pela verrinoso, por serem… Como é que se diz? Brejeiros, por serem maldosos, maliciosos, ou porque cantavam o fundamento, eram pessoas informadas. Portanto, ouvir… Eu ainda cheguei a ouvir alguns cantadores a cantar a salinização da cidade de Sára e mais não sei o quê. Portanto, lá eu tive testamento, coisas lá eu tive testamento, de forma muito engraçada, mas com conhecimento, não era falar à sorte. Uma tradição oral, no fundo. Uma tradição oral, transmissão oral, depois as pessoas… Ah, mas cedo! É que era! Como dizem hoje, se calhar, do Canário e como dizem de outros cantadores, quando a gente nota, quando vai a uma romaria, que a nota se desloca imediatamente quando a gente está. Por quê? Porque sabem que têm garantido um divertimento ou ouvir uma coisa que não se ouve qualquer cantador a cantar. E modesto é a parte que isso acontece muitas vezes. E eu fico muito feliz, porque ainda tive a oportunidade de cantar com alguns velhos cantadores, que eram velhos, quando eu era muito jovem, e hoje são falados. Mas também fico muito agradado quando os meios estudiosos fazem as suas apreciações e nos colocam em patamares iguais ou mais elevadas. Portanto isso dá-nos também uma certeza e uma responsabilidade de sermos exemplo para os outros. E é o que eu me sinto neste momento. É um exemplo para muitos jovens. E sempre tenho a oportunidade, eu digo aos jovens, para tentarem ir um pouquinho mais além, para cantarem, mas para não descurarem duas coisas importantes,
39:02 JORGE a tradição, mas também o que é o mundo do hoje. Portanto, no fundo, juntar a tradição com a modernidade, tentar misturar ali coisas para tentar encontrar aqui um novo caminho. Falamos aqui já várias vezes da questão do brejeiro, do quase dizer tudo. Onde é que está essa pequena fronteira que usa habitualmente, que é em Barreiros também, que é de dizer o subentendido, mas não dizer tudo e deixar que haja a participação de quem está a ouvir
39:36 CANÁRIO para completar a ideia de que estamos a desenvolver. Ora bem, falámos de coisas diferentes. O Kim Barreiros, de quem sou bastante amigo e grande admirador já o era e hoje em dia muito mais, porque somos bastante amigos.
39:49 JORGE E é mútuo, ele diz que o Augusto é o maior repentista
39:53 CANÁRIO e grande cantador de desafio que existe, e ele dê-lo publicamente. Obviamente que diz e eu agradeço, se calhar não é um caminho de exager, mas pronto, eu agradeço-lhe. Também para mim, como ele é único e tem mais graça as versões que ele faz de alguns originais do que alguns originais de temas maliciosos. E aí é que está. A malícia, utilizar palavras com segundo sentido, é uma arte que não é para qualquer um. A forma como canta, como interpreta, as frases em si, muitas cacafonias que muitas pessoas utilizam, depois outros vão tentar utilizar e não tem graça, porquê? Porque são forçadas. Estragam tudo. Não tem graça, pronto. Cada coisa quer, tem de ser feita na sua medida. O cantar ao desafio, com segundo sentido, em termos gerais, radica, por exemplo, numa vivencia de uma ruralidade que a maior parte dos jovens não viveu. E a ruralidade tem várias nuances, vários apontamentos da vida, desde a feitura do vinho, os primeiros brulhos, as primeiras aduelas, apertar o pipo, meter a torneira, tirar o batote, não sei quem, não sei como é. Até a mecânica, até o milho, o linho, portanto, tudo isso, o espigueiro, meter a espiga, tirar a espiga, pôr no espigueiro, não sei o que, esfolhar a espiga, são coisas com segundo sentido, mas podemos chegar até aos barcos, até ao pescar ou não pescar a cana, a rede, a isca, o anzol. Há coisas que se podem utilizar com segundo sentido. Trabalha por analogia? Também, mas se nós dissermos certas coisas que são na realidade que acontecem quando desenvolvemos determinadas atividades, especialmente rurais, nós conseguimos dizer grandes chalaças com grandes segundos sentidos. Mas se viérmos para uma linguagem muito mais moderna, os computadores, a disqueta, pé no disco duro, é um aborrecimento ou não? Não é não. Consegue-se adaptar à nossa modernidade, aos nossos tempos, um segundo sentido, podemos até falar inclusivemente de um avião. O avião é grande, o avião é terra na tua pista, demora muito a levantar, porque não sei o que mais, mas a levanta sempre com a ponta para cima. E já estamos todos a construir ideias. E aí é que está a graça, aí é que está o cerne da questão, aí é que está o segredo. Ora, quando nós começamos com palavrões, com linguagem rasgada, ao utilizar o palavrão, o calão, qualquer pessoa sabe, utiliza, melhor sabe o que quer dizer. E é como eu digo, quando se rasga o fio ao pano, que é uma frase popular, a coisa deixa de ter tanto sentido. Atenção, se calhar há gente que gosta… Tornas-se vulgar, no fundo.
42:54 JORGE Vulgar e grosseiro. Há muita gente que gosta disso. Mas o facto é assim, se eu ouço cantar usando analogias, dizendo-me metade de tudo que estou a entender, para mim é mais divertido, porque eu consigo participar nesse processo.
43:10 CANÁRIO Há umas metáforas, estamos a utilizar uma linguagem com segundo sentido, que toda a gente sabe o que eu quero dizer, mas eu não disse. É o piscar do olho. Exatamente. Eu sei que tu estás a dizer isto. Cada um que entenda como quiser. Agora, a gente tem essa capacidade e nem esses conhecimentos. A gente sabe lá o que é. A gente da cidade, por exemplo, sabe lá o que é meter a torneira no pipo, ou apertar os arcos, ou untar a leiva, ou untar as aduelas. A gente não sabe o que é isso. Quem nunca viu, quem nunca vivenciou, quem nunca viu fazer vinho não sabe nada. Ou pegar nos caixos, nos vagos, meter os vagos, a gente não sabe. Quem vivenciou, e no mundo rural isso é uma coisa que é trivial, digamos assim, ou pelo menos foi, tem outro sentido. E, portanto, é essa capacidade de brincar com as palavras, mas posso utilizar outras coisas. Um dia, uma das tais cantadeiras num programa de televisão disse-me que eu disse que estava cansado, que estive a fazer a limpeza, e obviamente que ela diz-me que tenho a vassoura partida. Vassoura partida? Eu não, a vassoura está encolhida, mas determinadas limpezas têm de ser com vassouras extensíveis, que é para chegar mais alto e a cites que nem todas chegam. Então a gente dá aqui a volta ao assunto, estamos a falar de coisas marotas, brejeiras,
44:29 JORGE mas com coisas do dia a dia, as fregonas e limites. Com uma elevação no fundo, com uma graça, e mantendo essa atenção com quem está do outro lado.
44:38 CANÁRIO E o nível, e não somos grosseiros, não somos… Se eu disser a uma mulher, eu vou meter a minha vassoura no teu balde e mais não sei quem, não. Eu vou meter a minha esfergona e vou apertá-la bem, então tem de ser uma esfergona. E este segundo sentido, esta utilização de… São coisas concretas, que a gente sabe o que é, com este segundo sentido… Deixam-nos um sorriso. Deixam-nos um sorriso, deixam-nos bem dispostos, quem apreciar, obviamente, e não faz de nós uns dos tais, não estou a dizer que são melhores nem piores, mas pelo menos procuramos ter essa qualidade, dos tais utilizadores de uma linguagem, de um vernáculo. É como eu digo, há pessoas que gostam muito do palavrão. Eu também sei utilizar, obviamente, mas… Mas não tem graça. Uma coisa é, por exemplo, imaginemos, estamos aqui em roda desta mesa, meia dúzia de amigos, ou homens ou mulheres, não estou aqui a discriminar obviamente ninguém, mas sabemos que estamos à vontade e que podemos ir até certo ponto. Mas quando se juntam outras pessoas que não nem conhecemos, ou quando estamos em cima de um palco… Numa relação com o público. E hoje, antigamente, era no terreiro com as pessoas à volta. Era o nosso público, era o nosso palco. Hoje, quando subimos a um palco, muitas vezes com muitos milhares de pessoas, ou quando fazemos uma coisa num meio de comunicação social, ou quer que seja, nós temos que ter bastante cuidado, não por aquilo que num momento possámos dizer,
46:02 JORGE mas por possámos ofender alguém. E o impacto dele. Como é que é a relação com o público? O facto de estar a tocar ou a cantar para um público que é responsivo e que lhe dá bons sinais, muda alguma coisa nesse…
46:17 CANÁRIO Muda, muda. Se estamos a fazer um espetáculo, seja de que tipo for, e temos três tipos de público. Temos um público distraído, amorfo, que não tem graça nenhuma, nem acha graça, ah não. Felizmente, não é os homens que encontramos. Podemos ter um público que está quietinho, a consumir literalmente todos os movimentos, todas as frases, todas as frases musicais, e é um público interessante. Para nós, para o nosso tipo de música, qual é o melhor público? É aquele que reage interais conosco. E então, eu digo muitas vezes, nós tocamos em casinos, tocamos em espaços auditórios, em espaços importantes, e quando chegamos à parte desgarrada, com toda a luminotecnia, os pôculos, as plateias escurecidas, quando chegamos à parte desgarrada, se não temos essa situação, eu peço, por favor, acenda uma parte da plateia que eu quero ver as pessoas. Quero vê-las. O olhar das pessoas, aquilo que despertamos, as sensações que despertamos e as emoções das pessoas, é fundamental. E ajusta o ritmo àquele público? Ajustamos o ritmo e, muitas vezes, o palabriado. Ah? E muitas vezes, a forma as palavras que dizemos, porque muitas vezes estamos numa plateia, e a gente pode experimentar, dizemos uma palavrinha mais forte. Ver até onde é que dá. Até onde é que dá, e nós vemos pela reação. E sem exagerar, sem passar o risco vermelho, nós podemos criar ali uma empatia com as pessoas, mas também se cantarmos uma coisa mais séria, mais, digamos, que ponham as pessoas a refletir, também isso também é importante. E então, eu gosto de ver as pessoas. Isto é quase um namoro? Quase um namoro. Não direi bem um namoro, mas uma… Como é que falta-me o termo? Interação tem-te a ver. Pode-me chamar namoro, do de barato.
48:14 JORGE E esse é o momento em que Augusto Canarias se sente
48:18 CANÁRIO povo no meio do seu povo? Eu digo muitas vezes isso, ainda. Aliás, a minha prática, a minha forma de estar é uma forma de estar natural, tanto quanto são as outras pessoas. Eu não sou nem mais nem menos qualquer pessoa de qualquer plateia, de qualquer comissão de festas, de um sítio qualquer. Eu chego a um sítio… Se tiver de comer com o pessoal, eu como com o pessoal. Se tiver de beber um copo com a malta, eu bebo com a malta. Bom, estrangeiro, não me escondo, gosto de estar com as pessoas. Porquê? Porque eu não sou nada diferente, nem não tenho aquela aúria, há muitos artistas que se escondem. E muita gente diz-me claramente isso. Posso saber se bem que é uma pessoa do povo, ou se é uma pessoa popular. Isso, eu não faço isso com o interesse para angariar para mim proventos, proventos no sentido de simpatias, não. Eu faço isso porque eu sou assim. E portanto, quando vou cantar é igual. Nós muitas vezes cantamos, vamos imaginar, uma festa académica, ou num evento que tem milhares de pessoas fazendo as festivais. Então, quando a gente salta para o meio do público, para a desgrada, para o tal momento, quem não conhece e tem seguranças, vê-lhes as seguranças. Todos fiches de medo. E a gente agradece porque é uma diferença, não é? Mas, não, realmente não faz falta. Não faz falta, porquê? Porque nós sabemos fazer respeitar. E nós, se alguém vem e tenta tocar, ou se depois quer tirar fotografias ou assim, a gente canta logo ali uma cantiga, a dizer-lhes, se querem tirar fotografias, não se cheguem assim para mim, esperem-me lá mais um bocadinho e vamos tirar no fim, por exemplo. E resolvemos o problema, na hora. Mudou logo a dinâmica. Mudou logo a dinâmica e, portanto, isso, e prova a evidência, que o que estamos a fazer é de improviso, faz parte do divertimento, da interação e temos resultados fantásticos. Tem alguma quadra preferida? Não. Não posso dizer que tenha uma quadra preferida, mas há momentos que eu me lembro que são inesquecíveis pela importância que tiveram. Por exemplo, um dia, o meu amigo Miranda trouxe-me uma quadra e cantou assim. Estamos a falar de 1985. E cantou assim. Tens cara de laborador, mas tens os ouvidos duros. Hades de vir à minha horta, vê se eu tenho os tomates maduros. É um sentido, e eu respondi-lhe. Mostra lá os teus tomates, nem as homens, nem a nada. Que lhes juntas o meu pepino e fazes uma salada. Isso é uma resposta de mestre. Na desgarrada a seguir, o materneiro do meu amigo Miranda utilizou a quadra dele e a minha. É outra coisa que eu nunca faço. Normalmente é muito difícil, muito, muito, muito difícil, tenho que estar muito cansado, ou não tenho nem nenhum recurso, que é raríssimo, eu utilizar uma quadra feita por outras pessoas. É muito rápido. Então posso entrar agora um bocadinho no sábado? Eu vou responder, porque ainda falta a cereja no topo do bolo. Então Miranda respondeu à quadra, porque a quadra primeira tinha sido para a que lhe ensinou, e utilizou as minhas duas quadras. Queres fazer uma salada, meu amigo companheiro, não te vai faltar nada que eu tenho aqui um galheteiro. Aperta-lhe bem apertadinho e vais ver que o bico se abre de um lado sai o azeite e do outro sai o vinagre. Eu isso nunca mais esqueço, porque é uma resposta, se formos duas respostas de mestre, e qualquer cantador teria orgulho em ter respondido, saber responder desta maneira. E mais, sem uma ageneira, sem um palavrão,
52:06 JORGE por segundo sentido. Quem chega, chega, quem não chega, não chegou e vamos andar. Não tem hipótese. Posso entrar dentro do cérebro do Alcúrcio Canário. Há uma parte do cérebro que está a cuidar da música no momento em que está a cantar, e outra parte que tem uma espécie de grande dicionário de palavras onde elas estão a ajustar-se para fazer esse improviso? Como é que funciona esse processo mentalmente?
52:28 CANÁRIO Porque é que eu tenho dificuldade em improvisar, por exemplo, a moda do Alentejo. Porque a estrutura que eles… ou do Brasil. O Brasil só no Ceará, não estou a falar sequer da zona dos gaúchos. Eles têm umas dezenas muito largas de formas de improviso. Com décimas, o nosso é muito simples, com décimas, com versos ilénicos, com versos com 12 sílabas. A própria rima, a estrutura da rima é complicada. As velhas dos Açores, por exemplo, da Terceira, são décimas. Já é uma complicação, para dizer uma coisa com jeito, com graça. E, portanto, de improviso, porque escrever não custa nada. Mas a música para nós é uma coisa natural, digamos assim. Portanto, nós só podemos cantar sobre a base musical que conhecemos. Daí, esta riqueza em Portugal conforma regiões e os instrumentos ser diversa. Onde é que está depois a nossa capacidade e o valor? Está em sabermos naquela malha e no contexto da forma como se canta em cada região, chegarmos lá, por exemplo, nós aqui cantamos sextilhas. Uma sextilha, a gente pode dizer mais do que se diz numa quadra. Ou não. Numa sextilha nós temos seis frases, não é? Numa quadra temos duas. Numa quadra cantada à moda dos Açores, a rima tem de ser obrigatoriamente cruzada. Primeiro, terceiro, segundo, quarto. Porque se eu não fizerem, o público assumia. Porque não é isso que está à espera? Não, o público está exigente, sabe que os bons cantadores cantam assim, todos cantam assim. Se aparece lá um domingo a cantar com os Açurianos, mas não faz a rima cruzada, e se quem não sabe cantar. Ok. A forma. Depois, o conteúdo, utilizar uma quadra e desenvolver uma ideia, seja de resposta, seja de ataque, ou de cantadora ou cantadeira, é uma confusão. E nos Açores há uma forma de cantar que não me agrada muito, no sentido de não haver muita atenção, que é o quê? Dois, quatro, seis cantadores. Quando são só dois, a resposta é imediata. Quando são quatro, com uma quadra, a quem responde? O segundo, o primeiro. Perde-se essa… vai deslindando ao longo do tempo. Atenção. Perde-se atenção. E quando podemos deixar para responder a um, deixar de responder a outro, coisas bonitas que podiam dar o encadeado engraçado. É por isso que eu defendo que a desgrava a dois é o ideal. Embora, às vezes, no nosso trabalho temos três e quatro. E como é que nós valorizamos a coisa? Pronto, é que sou o canário, essa prerrogativa dá-me um bocado a possibilidade de fazer isso, mas a verdadeira verdade não é muito correta, digamos assim. Temos que… E mesmo de eu cantar, depois o outro, e depois o outro, e depois o outro, não. Começamos um de cada vez, mas depois chegamos a um certo ponto e eu vou respondendo a A, a B e a C. Isto é, eu canto três vezes mais. Bom, mas isso é prerrogativa do mestre, não é? É prerrogativa do mestre, do artista, entre aspas, do canário, mas na verdade acaba por ser mais dinâmico. Mais dinâmico.
55:52 JORGE Mantém-se atenção que ao mesmo tempo estamos a cantar três desgarradas. E aí, a ver, vamos lá ver, será que o canário se aguenta?
55:58 CANÁRIO Será que ele consegue responder? Também tem essa graça? Também tem essa graça. Não é muito… Não é uma forma muito usual, digamos assim. Não é uma forma muito usual. Não que cantadores e cantadeiros não tenham essa capacidade, mas principalmente que não é muito usual. Usual é um cantar contra outro, eventualmente no início de uma cantoria faz essa audação, no fim a despedida e a onda salia. Mas depois o tema, o ideal, são dois cantadores, duas pessoas. Seja um homem com um homem, uma mulher e um homem. Uma mulher com uma mulher é muito usual. Não tem conhecimentos nas nossas zonas e nas outras de uma mulher cantar com outra mulher. Já se fez uma outra experiência, mas não colhe muito. Não há essa tensão? Não há essa tensão, não colhe muito. Ainda vai a São João de Arga? Ainda vou a São João de Arga, quando posso, sim senhor. O que é que se sente? São João de Arga, Feiras Novas, a Barca e aos Arcos. É mais difícil porque fica um bocadinho… Era o mesmo agosto que a gente tem de trabalhar. Com muitos concertos, não é? Graças a Deus. Agora, o São João de Arga, mesmo que seja a 1 ou 2 da manhã, procurla-o sempre por dois motivos muito importantes. Primeiro, que sou de voto de São João de Arga mesmo. É uma… Pronto, são coisas que a gente tem. Eu não sou propriamente o maior exemplo acabado do que estão praticando. Não sou, mas sou. Sou um homem que não tem nada a ver com a vida. Sou a que tem a sua crença e a sua fé. E por outro lado, porque também sou de voto, isso sim, da Romaria. E então… Viro o dia 28 para 29 de agosto. E num dar num saltinho lá, parece que não é a mesma coisa. O que é que se sente? Lá se sente-se uma coisa incrível que é, como é que no meio de um monte, uma pequena capela, um pequeno santuário, fechado, com os seus corteis, portanto, que foi construído pelos homens, como é que hoje temos estradas razoáveis, razoáveis. Temos ordenamentos de trânsito que obrigam a andar para um lado e a entrar para um lado e a ir para o outro, para a defesa de uma série de coisas, nomeadamente da segurança. Como é que uma comunidade ou comunidade de determinado lugar construiu ali aquele edifício de homenagem a um santo popular, que é o São João, São João de Arga, neste caso. Arga porque é da Serra de Arga, São João. E como é que vai ali tanta gente? Não agora, porque agora vai-se porque a gente vai lá, mas no tempo em que tinham que ir a pé, as tais sete serras e mais, não sei o quê, com os forneis às costas, com as concertinas às costas, com os barapaus e tudo aquilo, porque como é que as pessoas vão? Chegam lá e uma força tremenda, ainda cantam, ainda dançam, tendo depois um caminho para fazer de regresso à casa. Hoje não custa nada, porque as pessoas até podem ir a pé, mas vêm de carro. Chegam lá, têm as coisas para se deitarem, umas tendas, montam umas tendas de um dia para o outro. Antigamente não. Antigamente era horro lento e era como calhago. Ali sente-se um bocado uma energia, não sei explicar qual, que ali, noutros sítios como aquele, não é só São João de Arga, mas neste caso é o nosso, estamos aqui perto, mas na Peneda, por exemplo, é igual, e noutros lugares de pregrinação, digamos assim.
59:21 JORGE Todos os anos, a 29 de agosto, celebra-se a festa em honra de São João de Arga. Na véspera, os Romeiros viajam até ao centro da Serra de Arga, no Conselho de Caminha, para cumprirem as promessas ou simplesmente celebrar a vida. É neste sítio onde acontece a magia maior do cantar ao desafio. Quando lá forem, levem um fernel, provem o cabrito assado e bebam água ardente com mel. E assim vão perceber melhor as vozes que canta o Altminho. Até para a semana.